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“Queria que algumas jogadoras famosas defendessem mais o futebol feminino”

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Titular, camisa 10 e capitã do time de coração. No futebol, são raros os casos de quem chega ao patamar que Ary Borges, 19, alcançou logo nos primeiros anos de carreira. A maranhense de São Luís veio para o São Paulo no primeiro ano em que o clube tirou do papel o projeto de uma equipe feminina profissional e, por consequência, disputar a segunda divisão nacional da modalidade. “É uma grande responsabilidade vestir essa camisa e ser a capitã. Quando paro para pensar, fico meio em êxtase… mas não gosto de comparações com Marta ou outras. Quero ser a Ary”, afirma a jogadora. Oito meses após o primeiro treino com o time, Ary desponta como referência na equipe que está muito perto de se tornar campeã do Brasileirão Feminino A2 neste domingo, contra o Cruzeiro, às 14h (horário de Brasília), com transmissão ao vivo da Band. O São Paulo venceu a primeira partida, disputada no Pacaembu, por 4 a 0, e agora define o título no estádio do SESC Venda Nova, em Belo Horizonte. Mineiras e paulistas já estão classificadas para a primeira divisão nacional, assim como Grêmio e Palmeiras.

Uma rápida pesquisa no perfil de Ary no Twitter já revela a torcida da atleta pelo São Paulo desde 2016, quando não tinha nenhuma relação com o atual clube. A afinidade com a rede social, aliás, é uma das marcas da personalidade dela, que acompanha e responde mensagens dos mais de 6.000 seguidores ao menos uma vez por dia. “Tento ser acessível, como queria que os jogadores do São Paulo fossem quando eu não jogava aqui”, justifica a atleta. Logo após eliminar o rival Palmeiras na semifinal do Brasileiro, Ary não teve vergonha de ir até o Twitter para brincar com perfis de torcedores palmeirenses que apostavam na derrota são-paulina. A pequena rixa com os rivais começou em maio, quando a camisa 10 marcou um gol de cobertura no clássico pelo campeonato paulista.

Além de provocações, a jogadora usa a plataforma sempre que possível para jogar luz sobre as dificuldades do futebol feminino no país e a necessidade de superar preconceitos por parte da modalidade. Antes do segundo jogo da final, ela comemorou no Twitter a notícia de que o Cruzeiro havia conseguido levar a decisão do torneio para o Mineirão, onde a partida teria mais público e visibilidade. “Estou ali para fazer com que as pessoas entendam e abracem nossa causa. Queria que outras jogadoras famosas defendessem mais a modalidade, porque o que elas falam tem um peso muito maior do que o que eu falo”. Depois, o jogo acabou voltando para o SESC por conta de decisão da polícia local.

Apesar de se considerar nova para pensar na seleção brasileira, Ary viu com bons olhos a escolha de Pia Sundhage como nova treinadora do Brasil no lugar de Oswaldo Alvarez, o Vadão. A sueca, bicampeã olímpica, será a responsável pela preparação para a disputa das Olimpíadas de Tóquio, daqui um ano. Apesar dos elogios, a jogadora do São Paulo não crê em renovação até o Japão, seja pela proximidade com o torneio ou pela continuidade de outros responsáveis pelo esporte na CBF. “É complicado porque não acho que vai mudar muita coisa em quem está por trás”. Marco Aurélio Cunha, coordenador de futebol feminino da Confederação desde 2015, segue no cargo para o novo ciclo. “Mas torço pelo sucesso dela”.

Pergunta. Como você começou a jogar bola?

Resposta. Eu morava com a minha avó no Maranhão e atrás da casa dela tinha um campo de futebol, onde meu tio treinava um time de meninos. Então meus primos sempre me chamavam pra jogar futebol. O futebol sempre foi minha brincadeira preferida por influência dos meus primos, mas nem sonhava em ser jogadora. E ainda era muito difícil ter meninas que brincavam com a gente. Hoje, quando volto lá, vejo muito mais garotas jogando.

P. E como pulou do campinho para a carreira profissional?

Ary chegou no São Paulo em 2019.
Ary chegou no São Paulo em 2019. ALEXANDRE BATTIBUGLI

R. Vim para São Paulo com meus pais quanto tinha 10 anos. Comecei a jogar numa escolinha do Meninos da Vila, do Santos. Como só tinha três meninas na escola, meu pai conversou e consegui ficar um ano treinando com os meninos. Outro dia, meu pai, que trabalhava perto do Centro Olímpico, viu umas meninas passando na rua com a camisa escrito “futebol”. Ele sugeriu me levar lá e eu aceitei. Fui para a peneira com 11 anos, com mais 90 meninas, e só eu fiquei no time. Entrei já no sub-15 e subi para o profissional do Centro Olímpico no meu ultimo ano de sub-17, onde encontrei o Lucas [Piccinato, hoje treinador do São Paulo feminino] que era auxiliar técnico. Passei 2017 e 2018 no Sport Recife e voltei para cá nesse ano.

P. O Sport acabou em último lugar na primeira divisão do Brasileirão feminino, com zero pontos. Após uma derrota por 9 a 0 para o Santos, a jogadora Sofia reclamou da estrutura e das condições que o clube dava para as atletas. 17 dias depois, foi demitida do Sport. Você, que jogou dois anos lá, acompanhou como o caso?

R. Fiquei muito triste pela situação do clube porque criei um carinho grande pelas pessoas de lá, com quem converso até hoje. O time masculino caiu para a série B e sempre sobra para o feminino quando você tem que cortar gastos. As meninas treinam num campo horroroso, tiveram diversas lesões de ligamento no joelho por causa do campo. Quando começou o campeonato brasileiro, vi que o time não ia conseguir. A culpa é do presidente anterior [Arnaldo Barros], que deixou um rombo no clube, mas também do atual presidente [Milton Bivar, irmão de Luciano Bivar, presidente do PSL], que no começo do ano prometeu que iria manter o futebol feminino porque, se eles não mantivessem, o masculino seria punido. Antes estava tudo bem para eles porque só o feminino receberia a punição. Depois que a CBF decidiu que puniria a masculino, eles criaram o time de uma hora pra outra. A maioria das meninas nem tinha carteira assinada ou recebia salário suficiente para viver.

P. E você vê com bons olhos a nova regra da CBF e Conmebol, que obriga os principais clubes do país a formarem uma equipe profissional feminina?

R. Ou você vai no amor, ou vai na dor. Os clubes não quiseram fazer um futebol feminino por vontade, então achei bacana a CBF impor a regra. A obrigatoriedade deu uma alavancada enorme na modalidade. Muitos clubes fizeram de má vontade, mas muitos levaram a sério, como nós e o Cruzeiro, que está aí na final. Dos quatro que subiram pra A1, três foram obrigados a formar (São Paulo, Palmeiras e Cruzeiro). Olharam de uma forma especial e colheram frutos.

P. E como é ser camisa 10 e capitã do seu time do coração aos 19 anos?

R. Então, as três primeiras capitãs, Roberta, Cristiane e Giovana, machucaram logo no começo do ano. Depois disso, o treinador me colocou. Acho que conquistei a faixa pelo respeito que tenho pelas meninas e elas por mim. É uma grande responsabilidade e quando paro para pensar, fico meio em êxtase… mas não gosto de comparações com Marta ou outras. Quero ser a Ary.

P. Você se destaca pela sua personalidade nas redes sociais, sempre brincando com torcedores e rivais. E teve agora a provocação com a torcida palmeirense depois de eliminá-las na semifinal…

R. Às vezes as pessoas esquecem, mas tenho só 19 anos. Óbvio que hoje tenho mais cuidado, mas tento ser acessível, como queria que os jogadores do São Paulo fossem quando eu não jogava aqui. Não me arrependi [da provocação após o jogo contra o Palmeiras] porque futebol é isso. Nós jogadoras somos amigas e, se alguém tivesse se sentido ofendido, eu tinha pedido desculpas na hora. Mas está tudo bem. Tinha um perfil de torcedor palmeirense que falava no Twitter que a gente tomaria gol de cobertura deles, como no masculino. Salvei aquele tweet e, no final, quem fez o gol de cobertura no Palmeiras fui eu.

A camisa 10 é torcedora do clube.
A camisa 10 é torcedora do clube. ALEXANDRE BATTIBUGLI

P. Além das brincadeiras, você também está sempre se posicionando a favor do futebol feminino. Sente falta que jogadoras populares falassem mais sobre a modalidade?

R. Exatamente. Depois que acumulei mais seguidores, acho que não posso me omitir. Queria que algumas outras jogadoras famosas defendessem mais a modalidade, porque o que elas falam tem um peso muito maior do que o que eu falo. Estou ali para fazer com que as pessoas entendam e abracem nossa causa. Espero que sirva de exemplo também para as meninas mais novas, porque a representatividade é importante. Quero que me olhem e falem “ela joga num time grande e dá a cara a tapa”, para que vejam que também podem fazer isso. Que podem lutar pelos sonhos delas.

P. Você certamente acompanhou a escolha de Pia Sundhage como nova treinadora da seleção. O que achou?

R. Fiquei muito feliz. Ela tem tudo para melhorar um pouco o que vêm sendo esses últimos anos de desastre para a nossa seleção. Só é complicado porque não acho que vai mudar muita coisa em quem está por trás [da seleção], mas torço pelo sucesso dela. Ela chegou lá não porque é mulher, mas porque é competente. Com as pessoas certas em volta, tem tudo para transformar o cenário do futebol feminino no Brasil.

P. E você já faz planos para a seleção?

R. É o meu sonho, mas penso a curto prazo. O primeiro objetivo é o título da A2. A seleção vai ser consequência do meu trabalho, do que eu ganhar aqui. Para as Olimpíadas de 2020, acho que já está muito perto e não vai ter tanta renovação. Acima de tudo, espero que a Pia leve as melhores. A longo prazo, quem sabe estou entre elas.

El País

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