O relógio marca 1h34 da madrugada de sábado e a câmera da rua grava o caminhar apressado de um homem que carrega um bebê nos braços. Trata-se de um evento raríssimo na ilha — e praticamente um ato de transgressão. É a quarta vez, desde 2004, que ocorre um nascimento em Fernando de Noronha. Partos estão suspensos há mais de 15 anos no local, que encaminha as grávidas ao continente a partir do início do sétimo mês de gestação.
“Que ninguém copie isso nunquinha, mas é bem legal, não é? Uma criança nascer aqui”, opina uma voz anônima em uma das primeiras cenas do documentário Proibido Nascer no Paraíso, de Joana Nin. A única sala de parto que existia em Fernando de Noronha foi fechada em fevereiro de 2004 no Centro Hospitalar São Lucas, também único ponto de assistência médica da ilha.
Desde então, o governo de Pernambuco argumenta que sustentar uma equipe médica para uma maternidade bem equipada — e segura para as mulheres — custa muito mais do que levar as grávidas a Recife, bancar uma estadia de três meses e levá-las de volta para casa. “Acharam que seria mais gasto para eles manter uma UTI neonatal lá do que enviar as grávidas pra cá [Recife] com sete meses”, diz Ione, uma das três personagens centrais do filme. “Ou seja, para eles o custo financeiro é mais importante que o custo sentimental”, comenta a nativa de Noronha em um dos relatos.
Seu trabalho no aeroporto de Noronha é cobrar dos visitantes a Taxa de Preservação Ambiental (TPA), uma tarifa que turistas devem pagar com base no tempo de permanência no arquipélago. Se a estadia dura uma semana, por exemplo, o valor desembolsado é de R$ 503,72 por pessoa, com base na tabela de TPA de 2021.
O turismo e o uso e propriedade das terras de Noronha são planos de fundo para o desenrolar do documentário. Com o Parque Nacional Marinho ocupando 70% da ilha, a demanda por terrenos é maior do que a oferta disponível. A expansão da rede hoteleira nos últimos anos também ajuda a acirrar a disputa; mesmo quem habita o arquipélago há anos não é proprietário das próprias casas, eles apenas possuem autorização para utilizar o espaço.
O filme também acompanha a trajetória de Babalu e Harlene, mais duas mulheres orientadas a viajar até Recife para dar à luz. Dona de uma lanchonete, Babalu se manteve convicta de que sua filha seria uma nativa de Noronha: ela resistiu com a permanência na ilha o máximo que pôde. E é possível permanecer lá? O que acontece se ela não sair? A alegação apresentada às grávidas é o risco de possíveis complicações durante o parto, já que não há um espaço adequado para atendimento urgente ou cuidados intensivos.
Harlene também não queria deixar Noronha, mas acabou cedendo. “Eles ficaram uma semana me ligando do hospital: ‘tem que sair da ilha, está na hora de sair da ilha.’ A preocupação deles, no meu ponto de vista, foi muito mais me tirar da ilha do que dar assistência”, defende a guia turística. As consequências de continuar em Fernando de Noronha também afetam o emocional das futuras mães. “Eles fazem uma lavagem cerebral na grávida. ‘Se seu filho morrer é sua culpa’”, conta Harlene sobre o contato com os serviços públicos.
Direito à terra
Foi no mesmo ano de 2004 que o governo pernambucano editou um documento que estabelecia um controle migratório mais rigoroso no arquipélago, o Decreto nº 18/2004. “Quem vive lá há muitos anos acredita que os nascimentos foram suspensos para evitar que estes bebês reivindiquem direitos no futuro”, conta a diretora Joana Nin, a partir de conversas com pessoas da comunidade noronhense.
Em Recife, os partos das três personagens do documentário correram bem. “Eu não acho que o custo seja o real motivo de não ter uma saúde adequada na ilha”, comenta Harlene. “Porque Noronha, no ponto de vista de todo mundo, é a caixinha de surpresas de dinheiro no meio do oceano. Entram muitos turistas na ilha e aí eu pergunto: para onde será que vão milhões de reais?”, indaga.
*Com supervisão de Luiza Monteiro
Assista ao trailer de Proibido Nascer no Paraíso, disponível na plataforma de streaming Globoplay:
Fonte: Revista Galileu | Globo