Hao Zheng estava decidido. Nem as advertências de sua mãe — endereçadas ao filho via telefonema — fariam o jovem chinês de 15 anos desistir da ideia ambiciosa de se candidatar a uma posição nunca antes cogitada por alunos internacionais no internato onde começara a estudar, nos Estados Unidos: a de Maitre D’ (“chefe dos garçons”, em francês). As atribuições incluíam colocar-se à frente de uma espaçosa sala de jantar e, com um microfone em mãos, assumir as rédeas de um monólogo em tom de recepção aos estudantes. Haveria cargo melhor para ser, enfim, notado pelos colegas norte-americanos?
Embora se assemelhe ao roteiro de um filme, o parágrafo acima é, na verdade, mais do que isso. A história pertence à trajetória pessoal do diretor por trás de Dinner is Served, um dos títulos da nova coletânea de curtas-metragens do Disney+, lançada no último dia 28 de maio na plataforma de streaming da Disney.
Hoje aos 26 anos, Zheng é um dos seis profissionais de diferentes nacionalidades que foram selecionados para dirigir a primeira temporada do Disney Launchpad. Além dele, estrelam o time Aqsa Altaf, Stefanie Abel Horowitz, Ann Marie Pace, Moxie Peng e Jessica Mendez Siqueiros. Eles estavam entre os mais de 1.100 profissionais que enviaram sugestões de roteiro para a Disney em 2019, quando a empresa anunciou estar à procura de ideias vindas de cineastas residentes nos Estados Unidos pertencentes a origens pouco representadas no cinema. Entre os grupos-alvo da companhia estavam afro-americanos, asiáticos, latinos, LGBTQs e muçulmanos.
Ao longo de um ano – e uma pandemia no meio do caminho –, o sexteto recebeu mentorias de executivos de várias divisões da empresa, incluindo Disney+, Lucasfilm, Marvel Studios e Pixar. Uma nova leva de orientações deve acontecer ainda em 2021 com novos selecionados. Os curtas da primeira turma foram conduzidos pelo tema “Descobertas”, e os da segunda terão como fio condutor a temática “Conexão” e devem ser lançados em 2023. Segundo o Disney+, o projeto almeja “construir uma indústria de entretenimento mais inclusiva” a partir da diversificação das produções na plataforma.
O jantar está à mesa?
No internato nova-iorquino onde Hao Zheng cursou o ensino médio, em 2009, o jantar era mais do que uma refeição. Toda noite, os estudantes trajavam seus uniformes — as meninas, de saia e blazer; os meninos, de calça e gravata —, saíam de seus quartos e se dirigiam à vasta sala de jantar da instituição, como se estivessem a caminho de uma cerimônia. Ali, cabia ao Maitre D’ recepcionar, mesa por mesa, cada um de seus colegas.
Recém-chegado nos Estados Unidos, o estudante chinês não hesitou em se candidatar ao cargo de anfitrião: escreveu em um pedaço de papel os nomes e sobrenomes de cada um dos alunos aos quais teria de se referir, gravou suas falas e repetiu-as inúmeras vezes até garantir que não cometeria erros de pronúncia. “Como um chinês que tinha acabado de chegar aos EUA, sentia a necessidade de ser visto e de me encaixar naquele mundo, e a melhor solução que encontrei foi conseguir uma posição de liderança”, diz Zheng que, hoje, é um dos nomes da edição 2021 da Forbes Under 30 — lista que, anualmente, destaca os maiores empreendedores e criadores do mundo com menos de 30 anos.
Não deu certo. Na noite derradeira, as horas consecutivas de treino deram lugar a alguns minutos de ansiedade, que se mostraram desastrosos o suficiente para fazê-lo esquecer dos nomes de seus colegas — e ter de lidar com uma enxurrada de risos irônicos da turma. Mas foi a atitude que sucedeu o episódio de frustração que, mais de uma década depois, lhe renderia o maior plot-twist do roteiro de Dinner is Served, obra protagonizada pelo ator Qi Sun: como se não tivesse mais nada a perder, Zheng subiu ao palco da sala de jantar, segurou o microfone com firmeza e começou a cantar em mandarim.
“Foi muito estranho, porque todos ficaram me olhando com uma cara de ‘esse cara é esquisito’ mas, por algum motivo, durante aquele momento eu me senti muito feliz, não me importava mais com aquela posição”, relembra o cineasta a GALILEU. Segundo ele, o objetivo por trás da decisão de compartilhar a experiência pessoal com os assinantes do Disney+ foi mais do que autobiográfico: queria encorajar a autenticidade, especialmente entre os estrangeiros. “Queria que outras crianças como eu, que podem estar assistindo a este filme e que também estão confusas sobre sua identidade, possam sentir que não estão sozinhas em sua história, sua história também é ouvida e contada”.
Por um Eid nos EUA
A (quase) ausência de filmes com personagens muçulmanos na indústria hollywoodiana fez Aqsa Altaf crescer com a ideia de que, talvez, o grupo não tivesse importância o suficiente para aparecer nas telas. Quando soube que o Disney+ procurava histórias sobre origens pouco representadas no cinema, a cineasta criada no Kuwait por pais paquistaneses e cingaleses viu no projeto a oportunidade de levar um pouco de sua cultura a um gigante do entretenimento.
Em American Eid, uma jovem imigrante muçulmana paquistanesa nos Estados Unidos luta para que uma das festas mais importantes para o Islã se torne um feriado público no país. No curta-metragem, o Eid — que marca o fim do jejum do Ramadã — é só mais uma palavra de três letras para a maioria dos estudantes da escola de Ameena (Shanessa Khawaja). Não foi diferente com Altaf: quando se mudou para os EUA durante a adolescência, quase todos seus colegas não muçulmanos mal sabiam da existência desse feriado no Oriente Médio.
“Conforme eu crescia, também percebi que a mídia ocidental criou uma espécie de ‘teto’ de estereótipos negativos tóxicos sobre muçulmanos, então pensei ‘se você não começar a rachar esse teto, quem o fará?”, lembra a diretora, em coletiva de imprensa. “Não vai ser uma história que vai quebrar esse teto, mas é um estalo, e um estalo vai construir outro estalo e, eventualmente, teremos uma representação cultural mais adequada nas telas”.
O último chupacabra
Em uma rua deserta nos Estados Unidos, um trem turístico transporta uma dezena de norte-americanos. Boquiabertos, eles se debruçam sobre as janelas do veículo para registrar uma cena inédita: a passos lentos, caminha uma mexicana-americana junto a seu carrinho de tamales, uma massa tradicional da culinária mesoamericana. O grupo dispara flashes; lança moedas em direção à senhora — ela é a última mexicana no país.
O cenário distópico é do curta-metragem The Last of the Chupacabras, da cineasta Jessica Mendez Siqueiros. Na obra, a solitária Chepa (Melba Martinez) tenta manter suas tradições vivas ao lado de uma criatura ancestral misteriosa a quem, nos anos 1990, foi atribuída a culpa por uma série de ataques a animais rurais em regiões da América, como México, Chile e Brasil — o famigerado “chupacabra”.
Chepa era, também, o nome da bisavó de Siqueiros. Foi só quando a matriarca faleceu, aos 100 anos de idade, que a cineasta, à época aos 25, percebeu ainda não ter reunido informações o suficiente sobre a cultura de sua família. “Isso me fez sentir como um fracasso para a minha própria cultura e perceber que é nossa responsabilidade manter nossas culturas vivas”, relata a diretora, para quem o filme é uma celebração da identidade chicana.
Todo mundo é diferente
Moxie Peng era só uma criança quando escutou o pai de um de seus coleguinhas na China afirmar que sua paixão pelo balé fazia dele um menino anormal. Foi quando descobriu “que o mundo podia ser um lugar hostil”.
No curta-metragem The Little Prince(ss), quem assume a história de Moxie, que aos 33 anos se identifica como queer não binário, é o pequeno Kalo Moss (Gabriel). Ao final das gravações, o ator mirim não hesitou em questionar sobre a veracidade do roteiro — haveria Peng passado pela mesma situação?
“Quando eu disse que sim, ele lamentou muito que existam pessoas más como esse cara e que desejava que eu seguisse em frente e encontrasse pessoas que me amassem”, conta. “O fato de uma criança ter entendido a história foi um processo de cura para mim, foi mágico e me fez acreditar que a história valia a pena ser contada”, acrescenta. Moxie também foi responsável pelos filmes Known for Melt (2018) e My 17 Gay Friends (2014).
Em comunicado, Peng acrescenta que almeja ver o filme chegar a “cada criança queer e trans que está passando pela turbulência e pelo desconforto de ser diferente”. “Quero dizer a eles que não há problema em ser diferente e que eles devem ser muito gentis consigo mesmos”, afirma. “É o que nos torna reais, como um (a) verdadeiro (a) príncipe (sa), desde o início dos tempos”.
Uma ode à morte
Quando o menino de 3 anos de quem Stefanie Abel costumava ser babá fez um gesto de arma com as mãos em direção a ela, a cineasta não pensou duas vezes: em poucas palavras, explicou à criança que, se Abel morresse, ele nunca mais a veria novamente. Foi o suficiente para que o garoto, embora não entendesse um conceito como a morte, enrijecesse a expressão facial, como se a babá, em suas palavras, tivesse “quebrado algum pedacinho de inocência nele que nunca mais voltaria”.
“Isso me fez pensar sobre como falamos sobre tristeza em nossa cultura, como compartilhamos sobre isso e como falamos com as crianças sobre coisas difíceis como a morte”, afirma a diretora de Let’s Be Tiggers. O curta-metragem acompanha a história da babá Avalon (Otmara Marreno), que só consegue processar a perda de sua mãe após conversar com um menino de 4 anos sobre a finitude da vida — um tema que, confessa Abel, também não considera dos mais fáceis para travar diálogos.
Quando olha para o rosto de seus pais, de 70 anos, a cineasta diz enxergar seus avós já falecidos. A morte, diz ela, nunca esteve tão presente em seus pensamentos como agora. “Sou filha de um terapeuta e, por isso, sou muito boa em ouvir as pessoas, mas sou muito menos exemplar em compartilhar sentimentos, e acho que é disso que trata o filme”, afirma a Abel. “É uma espécie de lembrete para qualquer pessoa sobre o ato corajoso de compartilhar nossas tristezas e dores, isso é algo que realmente cria comunidade, cria união, faz você lembrar que não está sozinho nesses momentos difíceis”.
Metade vampira, metade humana
Estar entre uma identidade e outra é algo que Ann Marie Pace diz “conhecer muito”. Filha de uma mãe mexicana e um pai nascido nos Estados Unidos, a cineasta cresceu em uma pequena cidade do Tennessee, onde diz não ter encontrado muitas crianças na escola que se pareciam fisicamente com ela. Mais: descobriu-se bissexual durante a adolescência, quando lhe parecia “muito gay para ser hétero” e “muito hétero para ser gay”.
É também a dualidade do ser humano o carro-chefe de seu curta-metragem – Growing Fangs. O filme acompanha os desafios da jovem Val (Keyla Monterroso Mejia), que tenta manter em segredo sua identidade metade humana, metade vampira.
Introduzir o ser mitológico à história não foi à toa. “Eu sempre senti que a história do monstro é essencialmente a história de um estranho que quer ser compreendido e aceito, mas que é temido por aqueles que não sabem o suficiente sobre ele”, explica a diretora, conhecida pelo filme Beyond the Gate, rodado na Amazônia brasileira, que ganhou o primeiro lugar na categoria latina do DGA Student Film Awards. “Isso é algo com que qualquer pessoa que já se sentiu um estranho pode se identificar”, considera.
Fonte: Revista Galileu | Globo
*Com supervisão de Luiza Monteiro