Você está tendo um dia difícil. Acordou com uma infiltração que alagou seu banheiro. Atrasou-se para uma reunião importante e isso quase custou seu emprego. Você deixa de almoçar para tentar compensar. Quando acaba o expediente, corre rumo ao fast food mais próximo para tentar matar a fome e a exaustão acumulada. Mas os atendentes não parecem ter entendido o conceito do restaurante e conversam tranquilamente enquanto preparam o hambúrguer. Passam-se dez, 12, 15 minutos. Você sente o coração acelerar, um calor sobe à cabeça, o corpo tensiona. E explode. Quando a raiva passa, você sente um misto de vergonha e humilhação pelo ataque de fúria. Mas, para começo de conversa, por que ele aconteceu?
Endocrinologistas diriam que o ataque veio de um excesso de testosterona. Neurologistas defenderiam que o estresse acumulado provocou uma descarga de neurotransmissores no cérebro, acionando o sistema de “luta e fuga”. Psicólogos e antropólogos talvez explicariam que isso ocorreu porque vivemos em uma sociedade imediatista que estimula a violência. Para o neurobiólogo e primatólogo Robert Sapolsky, porém, a resposta provavelmente está em todas as alternativas anteriores: a melhor maneira de explicar e entender os comportamentos humanos é com uma abordagem interdisciplinar.
Em Comporte-se: A biologia humana em nosso melhor e pior, lançado em agosto no Brasil pela Companhia das Letras, o cientista analisa as camadas que compõem atitudes violentas e bondosas, para buscar compreender por que agimos de determinadas maneiras e como nosso cérebro evoluiu em paralelo com a cultura. “Por que você fez o que acabou de fazer? Por causa da natureza do mundo antes disso ou daquilo. E, se você não tiver cuidado, antes que perceba, logo estará discutindo com alguém sobre o Big Bang e o Universo”, afirma Sapolsky, em entrevista a GALILEU.
O livro, cuja tradução chega por aqui quatro anos após o lançamento nos Estados Unidos, foi considerado um dos melhores do ano por jornais norte-americanos como Washington Post e Wall Street Journal. Apesar de parecer óbvio que os comportamentos humanos possam ser interpretados com base em diferentes áreas do conhecimento, nem sempre os cientistas levam em conta essas particularidades, e Sapolsky inova ao propor uma abordagem mais cronológica do que segmentada.
“Cientistas têm que ser incrivelmente estreitos em seus focos, porque eles gastam uma quantidade enorme de tempo e de conhecimento em apenas uma pequena área”, diz. “O perigo está em decidir que ela representa o universo inteiro e explica tudo.” A seguir, ele fala sobre o que descobriu em sua ampla pesquisa para escrever Comporte-se.
Existem diversos tipos de comportamentos humanos, com suas diferentes complexidades. Por que decidiu escrever um livro focado em violência e gentileza?
Além do fato óbvio de que a maneira como equilibramos os dois comportamentos determina que tipo de planeta nós temos, eles são incríveis simplesmente por causa do tema que domina o livro: você pode ter exatamente o mesmo comportamento, mas em um contexto ele pode representar gentileza; em outro, crueldade. E entender como isso funciona realmente é a questão para compreendermos o nosso comportamento. Todos podemos concordar que, por diversos aspectos, um comportamento pode ser completamente maravilhoso ou inapropriado, mas divergimos sobre quais são as circunstâncias que o qualificam. É um tema que me desafia emocionalmente.
Em sua visão, quais são os aspectos mais fascinantes da relação humana com essas atitudes?
Acho que é o jeito que a gente interpreta esses comportamentos dependendo do contexto, de quando são interações entre nós e alguém que é outro de nós. Entre nós e eles, ou entre dois deles. E como a gente interpreta isso observando, levando em conta com o que eles [violência e gentileza] se parecem, o que eles foram ou o que serão versus a nossa interpretação situacional. Quando analisamos certas culturas, é preciso ter em mente os tempos difíceis que seus membros passaram e o horror que podemos sentir com o que eles fazem, pensam, comem, e a nossa incapacidade de estender exatamente os mesmos critérios quando olhamos para nós mesmos. Então, é muito fascinante nesse contexto. Nós certamente não temos regras uniformes para decidir o que é bom ou mau.
Para você, quais são os principais fatores que exercem influência sobre o comportamento de um indivíduo?
Pode parecer que eu estou fugindo da questão ao dizer que realmente não dá para separar em pedaços tudo o que explica por que alguém fez algo a outra pessoa. Por que você fez o que acabou de fazer? Por causa da natureza do mundo antes disso ou daquilo. E se você não tiver cuidado, antes que perceba logo estará discutindo com alguém sobre o Big Bang e o Universo.
Mas no campo do nosso comportamento, é quando vemos, por exemplo, que os níveis de xenofobia de determinada sociedade são estatisticamente previstos pela maneira como ela lidou com uma doença infecciosa 5 mil anos atrás. Tudo se resume a uma constante fusão entre sermos nada mais, nada menos, do que a biologia que nos precedeu e o jeito que interagimos com o ambiente ao nosso redor. São listas e listas de coisas que não temos controle sobre.
“Tudo se resume a uma constante fusão entre sermos nada mais, nada menos, do que a biologia que nos precedeu”
Robert Sapolsky, sobre aspectos que influenciam nossas atitudes
A ciência tende a compartimentar tudo, a abordar as coisas colocando-as em diferentes “caixas”. Quais são os riscos de fazer isso?
Quero evitar ser muito autocongratulatório ao falar “pense de uma maneira interdisciplinar”. Cientistas têm que ser incrivelmente estreitos em seus focos, porque eles gastam uma quantidade enorme de tempo e de conhecimento em apenas uma pequena área. Uma vez eu gastei nove anos em meu laboratório trabalhando em um mesmo projeto até obter uma resposta. E parte disso é a ansiedade de descobrir novos fatos, [porque] você tem que aprender mais e mais sobre cada vez menos coisas.
O perigo, claro, é quando você decide pesquisar essa lasquinha de madeira em particular, porque é mais acessível, ou porque você se sente mais confortável com essa abordagem, ou não quer fazer mal às cobaias, ou perguntar coisas às pessoas e só quer ficar sentado sozinho em um laboratório escuro. O perigo está em, depois que você coloca toda a sua existência nessa pequena e estúpida lasca de madeira, decidir que ela representa o universo inteiro e explica tudo.
E essa é a parte mais fácil. Uma bem pior é quando você é movido por alguma ideologia que o faz ver que todas as respostas partem dessa lasca de madeira. Mas, sendo um tanto indulgente, acho que isso ocorre porque você passa tanto tempo pensando em algo que isso começa a se tornar cada vez mais importante para você.
A respeito da Covid-19, vemos muitas pessoas endossando pontos de vista que podem se transformar em comportamentos perigosos, como a recusa em usar máscara ou se vacinar. Os humanos são a única espécie que adota atitudes de risco em nome de uma ideologia?
Acredito que isso faz parte das lições e maldições pelas quais nos distinguimos das outras espécies. Não somos a única espécie que mata, mas somos a única que mata por causa da parte do corpo que a roupa de outra pessoa está mostrando. Somos a única espécie que mata porque achamos que nosso sistema econômico é melhor que o de outro país. Fazemos isso por uma série de motivos irreconhecíveis, além do que outras espécies são capazes.
E o que eu acho mais fascinante é que, quando fazemos algo assim, usamos os mesmos comandos, os mesmos neurotransmissores e os mesmos circuitos de quando um chimpanzé faz algo parecido. Mas, credo, fazemos isso da maneira mais estranha possível. Matamos pessoas cujos rostos nunca vimos antes; salvamos pessoas que nunca conhecemos. Nos apaixonamos por pessoas que conhecemos online, mesmo sem saber como são seus feromônios, de um jeito que nenhum outro primata consegue. No entanto, estamos usando os mesmos circuitos fundamentais do ponto de vista biológico.
Quer dizer que, do ponto de vista biológico, não há explicação, mas os mecanismos são os mesmos de comportamentos com motivos biológicos?
O melhor jeito de explicar é quando pegamos um neurônio nosso, o de um chimpanzé, o de um rato de laboratório e o de um caramujo marinho. E quando você os vê por um microscópio, eles se parecem iguais, funcionam igual e usam as mesmas moléculas. Quando um caramujo marinho começa a ser condicionado a fazer algum comportamento defensivo após tomar um choque, e quando nós, humanos, somos condicionados a decidir que odiamos determinado tipo de pessoa que não odiávamos antes, vemos que são as mesmas moléculas sendo usadas. Não são nem moléculas similares. Temos exatamente os mesmos genes que codificam a mesma fosfatase, por exemplo.
O que nos difere? Será que basta reunir neurônios suficientes e simplesmente surge a complexidade que nos caracteriza? E se você quiser transformar um chimpanzé em um humano, basta dar a ele três vezes mais neurônios que ele se tornará versado em teologia, ideologia e estética — provavelmente em diferentes maneiras, mas em igual complexidade? Esses fatores que me fascinam infinitamente.
Um capítulo inteiro do livro é dedicado ao assunto “nós versus eles”. Considerando que o mundo parece estar se tornando cada vez mais polarizado, quais são as raízes dessa polarização?
Há diferentes versões disso. Tanto o meu quanto o seu país tiveram exemplos incríveis de como o medo e o ressentimento podem conduzir movimentos políticos inteiros e resultar em desastres. Uma das coisas que fica bem clara quando refletimos é que justificamos nossos ódios, nossas lealdades e nossas decisões morais, e tentamos enquadrá-los de forma racional. Mas simplesmente não são. São apenas emocionais. É muito fácil apenas falar “Ó, meu Deus, essas pessoas estúpidas, sem coração, que estão presas no medo e na ansiedade”. E o exemplo americano desse tipo de ideologia que predominou nos últimos quatro anos veio dessa população inteira de cidadãos que costumavam compor este país, definir nossa cultura. Mas agora são um bando de pessoas brancas velhas como dinossauros, pouco educadas e bastante furiosas. Elas costumavam ser donas deste lugar.
“Somos a única espécie que mata por causa da parte do corpo que a roupa de outra pessoa está mostrando”
Sapolsky analisa as particularidades do comportamento humano
O que você acredita que seja possível fazer para superar esse tipo de comportamento?
A grande conclusão que tiramos ao tentar lidar com as piores versões disso é que você não pode chamá-los de volta à razão. Para começar, eles não agem racionalmente se não obtiverem suas demandas. E o que vimos nesses últimos tempos é que, por mais que você tente apresentar fatos que deveriam convencê-los a mudar, mais fortemente eles se agarram ao que já acreditam. Então você precisa entender quais são os fatores emocionais que levam uma pessoa a essa situação, porque certamente quaisquer explicações racionais que ela dê ou pense vêm depois do choque de tentar se justificar.
Figuras políticas como Hitler sempre existiram e permanecem até hoje entre nós. Como o comportamento dos que seguem essas ideias retrógradas mudou ao longo do tempo? E qual o papel das mídias sociais?
Acho que existe um conjunto de fatores que influenciam esse comportamento. São os padrões migratórios ao redor do planeta, que para nós [norte-americanos] se torna um problema mais inflamado do que no Brasil. É a globalização das economias, que creio que afete todo país em que os empregos podem migrar para lugares onde crianças de 10 anos trabalham em fábricas. Tudo isso contribui para o surgimento desses movimentos nacionalistas em alguns países.
E com as redes sociais, você simplesmente ouve seus próprios pontos de vista serem gritados no seu ouvido, 24 horas por dia se quiser. E, melhor ainda, elas dão as ferramentas para você decidir o porquê de o outro lado estar mentindo. É como uma barreira em que você pode passar a vida toda recebendo informações totalmente erradas, compartilhadas por pessoas que se parecem e agem como você, e com quem você mantém relações muito gentis. É um mundo todo seu, onde é possível ficar isolado.
Você diz que devemos buscar entender nossos comportamentos para sermos melhores. O que uma pessoa deve fazer para entender suas próprias atitudes?
Desconfiar de seus primeiros reflexos de julgamento e voltar uma segunda, terceira ou quinquagésima vez dizendo “de onde isso veio?”. Na verdade, isso se justifica no sentido de reconhecermos de onde vêm nossas vulnerabilidades emocionais e trabalharmos duro para entender o perdão que damos a nós mesmos. Porque é entendendo como chegamos onde estamos que compreendemos os processos internos de nossa mente. Todos os outros chegaram aonde estão por causa de suas próprias histórias e das coisas internas às quais não temos acesso.
Nós fechamos outra pessoa no trânsito porque estamos desesperadamente atrasados para uma reunião. Alguém nos fecha porque é um estúpido. Então precisamos entender isso, além da afirmação biológica de que nenhum de nós é responsável por quem nos tornamos. Se você acreditar realmente nisso, é impossível odiar qualquer um.
Ao mesmo tempo, no livro, você diz não acreditar em livre-arbítrio. Se for assim, como entender nossos comportamentos pode nos ajudar?
Precisamos nos reconciliar com a ideia de que somos organismos determinísticos. Na verdade, nós não decidimos mudar. Somos mudados pelas circunstâncias. E, dependendo do momento, a capacidade daquela circunstância de nos mudar daquela maneira já está definida. Além disso, se você tiver a mentalidade correta, ler sobre uma dessas pessoas que eu apresento no capítulo final do livro fará você fortalecer o circuito neural do otimismo. Dá uma sensação de eficácia. E isso é biológico. Você simplesmente fortalece o circuito que, de alguma maneira, acaba protegendo-a da neurobiologia do desamparo. Ou você fortalece o circuito que lhe ajuda a fazer uma coisa difícil quando está assustada ou quando é tentador fazer de outra maneira. Tudo pode ser alterado dramaticamente pelas circunstâncias. E, como resultado de aprender isso, a mudança ocorre.
Em suma, você não pode mudar, mas pode mudar as circunstâncias para que elas então mudem você?
Exatamente.
Fonte: Revista Galileu