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Saiba o que diz a lei que criminaliza o “stalking” e veja como se proteger

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Uma mulher decide viajar para o exterior com a melhor amiga para fugir do ex-namorado. Ao chegar lá, dá de cara com ele no saguão do hotel. Uma universitária começa a ser importunada pelo sujeito que conheceu nas férias. Como não o adicionou em suas redes sociais, descobre que ele se matriculou em sua turma. A moradora de um condomínio convida o vizinho para jantar. Diante de sua recusa em agendar novos encontros, o indivíduo passa a interfonar incontáveis vezes para seu apartamento.

Os personagens acima não foram pinçados de filmes como Atração Fatal ou Cabo do Medo. As vítimas são reais e foram atendidas pela advogada Luciana Gerbovic, especialista em crime de stalking (perseguição, em livre tradução). “A maioria dos casos ocorre depois do fim de um relacionamento. Inconformada, a pessoa rejeitada passa a perseguir a outra, presencial ou virtualmente”, explica Gerbovic, mestre em Direito pela PUC-SP e autora do livro Stalking (2016).

Desde o último dia 31 de março, o ato de perseguir uma pessoa é crime no Brasil, conforme postula a lei nº 14.132/21. Antes disso, a perseguição era apenas uma contravenção penal de “perturbação da tranquilidade alheia”, punida com prisão de 15 dias a dois meses e multa. Agora, porém, acossar alguém, repetidas vezes e por qualquer meio, dá cadeia de seis meses a dois anos — além de multa. Tem mais: a pena poderá ser aumentada em 50% se, entre outros agravantes, o crime for cometido contra criança, adolescente ou idoso, por dois ou mais indivíduos ou com uso de arma.

Além da esfera criminal, o stalker — termo em inglês usado nas redes sociais para quem persegue uma pessoa — também poderá ser processado civilmente por danos morais (de transtorno de ansiedade a quadro de depressão) e materiais (de consulta médica a mudança de endereço). “São necessários três requisitos, não cumulativos, para configurar crime: ameaça à integridade física ou psicológica da vítima, restrição de sua capacidade de locomoção e invasão de liberdade ou privacidade”, esmiúça o advogado Bruno Bottiglieri, mestre em Direito pela Universidade Santa Cecília e autor do livro Stalking – A responsabilidade civil e penal das pessoas que perseguem obsessivamente (2018).

O stalking já é crime em outros países, como França, Itália, Alemanha, Canadá, EUA e Reino Unido. E, assim como os exemplos citados no início deste texto, as vítimas são sobretudo do sexo feminino. Em 80% dos casos, segundo o Stalking Resource Center, vinculado ao Centro Nacional para Vítimas de Crime, nos Estados Unidos, são homens que perseguem mulheres. Um estudo da instituição revela que 15% das mulheres e 6% dos homens estadunidenses são vítimas de stalking em algum momento da vida. E ainda: em 61% das ocorrências com mulheres, o perseguidor é o parceiro; em 16% dos casos, são desconhecidos.

Um levantamento conduzido por pesquisadores da Austrália com 200 stalkers, publicado em 2009 no periódico Law and Human Behavior, constatou que 87,5% das perseguições duram mais de duas semanas, mas apenas 26% dessas se estendem além de um ano. De forma alguma, porém, isso significa que os danos às vítimas sejam efêmeros.

Nas ondas do medo

O projeto que deu origem à lei nº 14.132/21 é de autoria da senadora Leila Barros (PSB-DF). “É um mal que deve ser combatido antes que a perseguição se transforme em algo ainda pior”, declarou a parlamentar em comunicado à imprensa, logo após a sanção do projeto de lei. Barros dedicou a aprovação à radialista Verlinda Robles, ex-locutora de uma rádio em Costa Rica (MS) e vítima de stalking.

Tudo começou em 2016, quando um ouvinte passou a ligar todos os dias pedindo música. Certa vez em que Robles atendeu a ligação, ele declarou seu amor. De nada adiantou dizer que a paixão não era correspondida. Em um mesmo dia, o stalker telefonou mais de 25 vezes para o celular da radialista. Como ele conseguiu seu número? Nem ela sabe dizer. Para fugir de seu perseguidor, a locutora com 30 anos de carreira chegou a mudar de cidade. Em vão.

“Se acontecer algo comigo, todos saberão quem foi”, desabafou Verlinda em seu perfil numa rede social, em 25 de janeiro de 2019. Nesse mesmo dia, ela registrou boletim de ocorrência (BO) e entrou com medida cautelar, que obrigava o perseguidor a manter distância de pelo menos 200 metros e o proibia de entrar em contato por telefone ou e-mail.

“Não há limite fixo, estabelecido pela lei, quanto ao número mínimo de ligações ou mensagens suficientes para tornar ilícito o contato. A linha divisória entre o tolerável e o abusivo é o caráter indesejável da abordagem”, explica Ana Lara Camargo de Castro, autora de Stalking e cyberstalking (2021) e promotora do Ministério Público do Estado de Mato Grosso do Sul.

Desde 1º de abril, quando passou a vigorar a lei que pune perseguição física ou eletrônica, a Secretaria de Segurança Pública sul-mato-grossense já registrou 505 boletins de ocorrência. Das 27 unidades federativas do país, contudo, apenas cinco têm esses dados consolidados: além do Mato Grosso do Sul, Rio Grande do Sul (2.094), Mato Grosso (529), Pará (243) e Alagoas (109). Segundo o Ministério da Justiça e Segurança Pública, a plataforma do Sistema Nacional de Informações de Segurança Pública (Sinesp), usada para consultas em investigações e operações, “ainda não dispõe de informações sobre crimes relacionados à prática de stalking”.

Ao desconfiar de que está sendo vítima, Luciana Gerbovic orienta reunir evidências da perseguição, ir a um cartório fazer uma ata notarial (espécie de histórico de ofensas e agressões) e registrar BO na delegacia mais próxima. “Há relatos de agressões físicas contra a vítima, o atual companheiro, familiares e até animais de estimação. Um stalker pode chegar ao ponto de matar”, alerta a advogada.

Dormindo com o inimigo

No último dia 5 de agosto, um homem de 32 anos foi preso em Manaus por “stalkear” a ex-companheira. “Os dois foram casados por 15 anos e estavam separados há cinco”, relata a delegada Kelene Passos, titular da Delegacia Especializada em Crimes Contra a Mulher (DECCM), responsável pelo caso. “Nas últimas semanas, quando descobriu que a ex-parceira estava começando a se relacionar com outra pessoa, o sujeito passou a ameaçá-la de morte”.

Nas redes sociais, o indivíduo criava perfis falsos, fazia comentários ofensivos e, quando era bloqueado no WhatsApp, trocava o número do celular. Fora delas, ficava de tocaia na porta da escola onde a mulher trabalha e, à noite, em frente à casa onde ela mora, para vigiar quem entrava ou saía. O sujeito foi detido por crime de stalking e por descumprir medida protetiva. “Sua pena pode chegar a cinco anos”, explica Passos.

Para registrar a ocorrência, a delegada aconselha reunir imagens em que constem ameaças e abusos e levar testemunhas que viram o autor da perseguição na porta de casa ou do trabalho. Mas as evidências podem ir muito além disso. Praticar cyberstalking não se resume a superlotar a caixa de entrada da vítima com spams, criar perfis falsos nas redes sociais ou postar comentários ofensivos.

Segundo a ONG SaferNet Brasil, há outras modalidades: divulgar dados pessoais da vítima, invadir aparelhos eletrônicos para acessar suas contas e enviar vírus para o computador. Entre 2015 e 2020, a instituição atendeu 87 casos de perseguição online; desses, 75,9% são de mulheres.

Como medidas preventivas, a psicóloga Juliana Cunha, diretora da SaferNet Brasil, sugere alguns alertas: evite compartilhar informações como nome completo, endereço residencial ou comercial e número de telefone; tenha cuidado com quem se relaciona nas redes sociais e configure seu perfil para que apenas amigos tenham acesso às suas postagens.

“Em geral, as vítimas se culpam pelo cyberstalking e evitam contar o que estão vivendo”, explica. “É importante quebrar o silêncio e buscar o apoio de parentes e amigos. Quanto maior a rede de proteção, melhor”.

Louca obsessão

O rejeitado é o tipo clássico de stalker. “É o indivíduo que, inconformado com o fim de um relacionamento, não sabe lidar com a frustração”, define a promotora Ana Lara. Mas há outros: o ressentido, que persegue por vingança; o carente, que tem paixão platônica; o iludido, que acredita que seu amor é correspondido; e o predador, que segue a “presa” pensando em estupro.

“A maioria dos stalkers, salvo raras exceções, não tem diagnóstico psiquiátrico. Sabem o que estão fazendo”, garante o psiquiatra Daniel Martins de Barros, professor colaborador do Departamento de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP).

Um stalker famoso é o norte-americano John Hinckley Jr. Ele era tão obcecado pela atriz Jodie Foster que, em 30 de março de 1981, tentou assassinar o então presidente dos EUA, Ronald Reagan, só para impressionar a estrela de Taxi Driver, que tinha 19 anos na época. Um ano antes do atentado, matriculou-se no curso de literatura que a atriz frequentava. No julgamento, Hinckley Jr alegou insanidade e, em 2016, saiu da instituição psiquiátrica onde vivera por 34 anos.

Os estragos do stalking são imensuráveis. Só em termos de saúde mental, a vítima pode desenvolver de transtorno de ansiedade a depressão. E há ainda os impactos no dia a dia. Segundo o Stalking Resource Center, 81% dos perseguidos trocam de emprego, 73% aprendem alguma modalidade de luta e 39% mudam de endereço.

Embora as pesquisas indiquem que apenas um em cada quatro casos termine em violência, Barros pede à vítima que não minimize a perseguição ou subestime o perseguidor. “Não responda às mensagens nem negocie uma trégua, muito menos faça ameaças. Pode ser pior. Afinal, tudo o que o stalker quer é a atenção de sua vítima. Comunique o caso às autoridades competentes”, orienta o psiquiatra.

Para a promotora do Mato Grosso do Sul, o efeito da nova lei brasileira só poderá ser mensurado a médio e longo prazo. No entanto, seu impacto cultural é imediato: “Vamos separar o uso coloquial da expressão ‘stalkear’, como algo jocoso e inofensivo, do seu sentido real, uma conduta capaz de atemorizar a vítima”.

Não romantize a perseguição

O cantor britânico Sting costuma rir sempre que alguém lhe diz que se casou ao som de Every Breath You Take. De romântica, a canção de 1983 não tem nada. Composta para sua ex-esposa, a atriz Frances Tomelty, a letra fala de ciúme e possessividade. Em diversas ocasiões, o cantor já definiu um dos clássicos do The Police como “sinistro” e “perverso”. “Cada vez que você respira/cada movimento que você faz/cada jura que você quebra/cada passo que você dá/Estarei de olho em você”, dizem os primeiros versos.

Na ficção, o novo stalker da temporada é Joe Goldberg, vivido por Penn Badgley na série Você, da Netflix. Nas redes sociais, o ator já teve que repreender fãs que se dizem apaixonadas por seu personagem e pedir a elas para não romantizarem algo que pode ser fatal. À internauta que postou “Me sequestre, por favor” o ator respondeu: “Não, obrigado!”.

Na vida real, só quem já teve um stalker no seu encalço sabe o horror que é. A escritora paulista Paula Febbe, de 38 anos, que o diga. Em 2014, ela terminou um namoro que durou pouco menos de um ano. Antes mesmo do fim do relacionamento, seu namorado já avisava: se terminasse com ele, teria problemas.

“Muito do que me fez continuar durante esse tempo foi medo. Até o ponto em que o medo se tornou menor do que o terror que era estar com ele”, confessa Paula. Certa vez, o ex apareceu numa festa onde ela estava. Ao ser indagado sobre o que fazia lá, ele respondeu que esperava “uns amigos”. “Amigos esses que nunca chegaram”, observa a escritora.

Quando um internauta começou a postar resenhas falsas no Skoob, ameaçando Paula de “pagar” pelo que fez e xingando a autora “das palavras mais horríveis”, ela registrou boletim de ocorrência. Na dúvida, entrou em contato com a rede social e confirmou que todas as resenhas partiram de um mesmo computador. “A lei não serve para coibir os perseguidores, mas para proteger as vítimas. Antes, não tínhamos o que fazer. Agora, eles vão presos”, comemora.

Fonte: Revista Galileu

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