O Globo de Ouro será “a festa do ano”, de acordo com Helen Hoehne, a presidente da Associação de Imprensa Estrangeira de Hollywood (HFPA, na sigla original). Em outras edições, a declaração, ainda que burocrática, seria uma promessa realista. Se há algo que estas cerimônias anuais entregaram com alguma constância foram momentos divertidos, seja pelo sarcasmo dos monólogos dos apresentadores e discursos, seja pelo simples fato dos indicados desfrutarem um belo open bar. No entanto, a entrevista dada à Reuters na véspera da edição 2023 é mais do que uma tentativa de criar hype para a cerimônia: é um sinal da ânsia da organização responsável pelo prêmio há 80 anos de recuperar a relevância e a credibilidade.
Isso se deve a uma matéria do Los Angeles Times que, em fevereiro de 2021, revelou que a HFPA não tinha sequer uma pessoa negra entre seus então 87 membros, e ainda jogou luz às práticas pouco éticas dos seus associados. O jornal denunciou, por exemplo, que era comum se aceitar presentes em troca de votos — foi graças a viagens de luxo à França que Emily in Paris conseguiu suas indicações em 2020, para citar um caso recente —, quando não pedir favores a celebridades e estúdios. Outro dos destaques da reportagem foi a falta de clareza dos critérios para integrar o grupo. Porque, embora jornalistas de veículos pouco relevantes ao redor do mundo estivessem no quadro de membros, a organização rejeitava repórteres e críticos de publicações e carreiras sólidas, sem justificativa.
A falta de transparência e de diversidade, sobretudo em um cenário após a controvérsia do Oscar So White, que clamava por mais representatividade racial, fez com que a reportagem tivesse grande impacto em Hollywood e, consequentemente, no Globo de Ouro. A premiação não apenas foi alvo de backlash declaratório, como perdeu sua transmissão na TV em 2022 e foi obrigada a considerar uma reformulação. Por isso, em setembro do ano passado, a HFPA anunciou a adição de 103 novos membros, certificando-se de manter um painel diverso de participantes. Agora, 52% dos seus membros são mulheres e 51,5%, não-brancos (dos quais 19,5% são latinos, 12% asiáticos e 10% negros). Além disso, a associação proibiu presentes e garante que expulsou, de forma discreta, membros cujas práticas violavam seu regimento.
As medidas parecem ter agradado Hollywood, já que a NBC volta com a transmissão nos Estados Unidos em 2023. No entanto, após sentir um golpe tão intenso nos últimos 20 meses, a questão que parece dominar as conversas hoje sobre o prêmio é: essas medidas bastam para recuperar a credibilidade do evento?
Talvez a pompa e os troféus dourados tenham acentuado sua importância aos olhos do público ao longo dos anos, mas a verdade é que o Globo de Ouro, embora fosse uma vitrine para a indústria, nunca foi levado muito a sério dentro da temporada de premiações. Historicamente, a HFPA sempre reuniu uma quantidade tão seleta de membros — e, como sugere o nome, todos jornalistas estrangeiros — que nunca fez sentido ser usada como parâmetro para fazer apostas para o Oscar, uma premiação que, apesar dos seus problemas, é votada por profissionais da indústria.
Essa distinção por si só não seria suficiente para torná-la irrelevante, apenas pouco influente na entrega do restante dos prêmios. O Globo de Ouro ainda poderia funcionar como o Critics’ Choice Awards, e impulsionar a bilheteria de seus vencedores com seu aval de “melhor”, como de fato acontece. No entanto, a benevolência exagerada com os estúdios mediante a um mimo ou outro e sua composição apenas recentemente diversa deixam evidente que os golpes de imagem dos quais a associação precisa se recuperar na cerimônia de 2023 são muito mais profundos e antigos do que essa sua falta de correlação com o prêmio da Academia.
Acusações sobre sua transparência e falta de credibilidade circulam desde o final dos anos 1950, e todos foram documentados pela imprensa. Em dezembro de 1996, por exemplo, a repórter Sharon Waxman, do The Washington Post, denunciou como os membros da associação “aproveitavam um fluxo interminável de presentes, quartos de hotel e refeições gratuitas dos principais estúdios”. E mais: como publicações consagradas, como o Le Monde da França, tinham sua inscrição negada consecutivas vezes, enquanto a maioria dos membros eram pessoas que tinham o jornalismo como hobby. Quer dizer, alegações muito semelhantes às feitas em 2021 pelo Los Angeles Times.
Mesmo quem não estivesse por dentro das minúcias destas reportagens tinha alguma ciência do caráter duvidoso da premiação. Anos antes desta reportagem, o comediante britânico Ricky Gervais, enquanto mestre de cerimônias, chamou o Globo de Ouro de “um pedaço de metal que alguns jornalistas velhos, confusos e bonzinhos querem entregar para poder conhecê-los e tirar uma selfie”. Já em 2020, quanto à falta de representatividade entre os indicados, Gervais — pela quinta vez à frente da cerimônia — disse: “infelizmente, não tem nada que possamos fazer. Todos na HFPA são muito, muito racistas”. Mais do que um interesse pessoal do comediante — porque, convenhamos, Gervais está mais comprometido em ser ácido do que levantar qualquer bandeira referente à diversidade —, a repetição só evidencia como a matéria de fevereiro de 2021 não pegou ninguém exatamente de surpresa. Já tinha virado, literalmente, uma piada.
Por isso, não se engane: se a recorrência sugere qualquer coisa é que salvar a premiação é de interesse não só da HFPA, como também dos próprios estúdios — em fevereiro de 2021, uma fonte do Los Angeles Times chegou a declarar que “o problema é que os estúdios precisam deles”, isto é, dos membros da HFPA —, dada sua influência conquistada e sua posição no calendário como uma espécie de aquecimento para o Oscar.
Logo, não é surpreendente que parte de Hollywood esteja pronta para perdoar e dar uma nova chance à associação. A edição 2023 já confirmou a participação do diretor Quentin Tarantino, das atrizes Jamie Lee Curtis, Ana de Armas, Mj Rodriguez e do comediante Tracy Morgan como apresentadores na cerimônia comandada por Jerrod Carmichael — e isso para citar só alguns exemplos. A expectativa é que os grandes nomes da indústria, como o indicado à Melhor Direção Steven Spielberg e o homenageado Eddie Murphy, deem as caras no Beverly Hills Hotel, em Los Angeles, onde tradicionalmente ocorre a entrega dos troféus.
Ainda assim, é evidente que este não é um sentimento unânime. Vítima de assédio do antigo presidente da HFPA Philip Berk em 2003, o ator Brendan Fraser, por exemplo, declarou seu boicote antes mesmo do anúncio dos indicados — “minha mãe não criou um hipócrita”, afirmou à GQ, em novembro. Tom Cruise, apesar de estrelar o indicado Top Gun: Maverick, também é uma ausência esperada, já que devolveu seus três troféus depois do estouro do último escândalo. Além deles, o silêncio após as indicações dá a entender que nem todos os astros encaram o prêmio como algo que valha ser celebrado — a ver, já que Hoehne disse à Reuters que “poucos não virão, estamos empolgados”.
Deste modo, embora seja sabido que a associação e as agências de relações-públicas tenham voltado a se aproximar, há um clima de incerteza sobre como será a recepção a esse comeback. E detalhe: admitido publicamente pelo bilionário Todd Boehly, que desde outubro de 2021 serve interinamente como CEO da associação. “Tenho pesadelos de que não vá funcionar também”, afirmou ao Los Angeles Times, em dezembro do ano passado. “Não esperamos que vamos convencer 100% das pessoas — isso não seria realista. Mas também esperamos que, com o tempo, possamos mostrar que esta é uma organização profissional e evoluída, que entende seu papel e não ultrapassa seus limites de modo algum”.
Se a HFPA dará passos significativos ou não com sua tentativa de recuperar algum grau de prestígio, saberemos em breve —muito provavelmente primeiro pelas redes sociais, já que o Globo de Ouro não terá transmissão oficial no Brasil.
Fonte: Omelete