Ao combinar técnicas de encefalografia (registro gráfico das correntes elétricas do cérebro obtido por meio de eletrodos) e aprendizado de máquina, pesquisadores conseguiram encontrar padrões na atividade cerebral de ratos sob estresse e, dessa forma, predizer quais animais seriam mais resistentes a adversidades.
Resultados da pesquisa, conduzida na Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FMRP-USP) com apoio da FAPESP, foram publicados no Journal of Neuroscience. Além de servir como biomarcadores de resiliência ao estresse, esses achados podem, no futuro, orientar o tratamento de pacientes psiquiátricos.
“Por meio dessa abordagem sofisticada de aprendizado de máquina, conseguimos identificar padrões de atividade neural no córtex pré-frontal e no hipocampo, o que permitiu detectar os animais resistentes ao estresse. Uma possibilidade futura seria antecipar, por meio do estudo dos ritmos neurais, aqueles indivíduos que teriam uma resposta eventualmente mais positiva a um momento de estresse”, explicou João Pereira Leite, professor do Departamento de Neurociências e Ciências do Comportamento da FMRP-USP e coordenador do estudo.
Os pesquisadores usaram um modelo experimental consagrado na psiquiatria para estudos sobre estresse. O método consiste em submeter um grupo de ratos a choques moderados nas patas, dos quais podem escapar pulando por cima de um pequeno muro. Outro grupo recebe choques em quantidade, intensidade e duração idênticas ao do grupo anterior, porém, sem a possibilidade de escapar. E, no terceiro grupo, estão os animais-controle, ou seja, que não recebem choques.
Como explicam os pesquisadores, a maioria dos animais que passa por choques incontroláveis falha em escapar de adversidades apresentadas posteriormente, mesmo quando os novos estímulos são “escapáveis”. “É um fenômeno bem entendido na psiquiatria para esse modelo experimental e que recebe o nome de desamparo aprendido. Já os animais que passam por uma primeira exposição a choques controláveis tendem a se tornar mais resistentes a situações estressoras no futuro, fenômeno atualmente denominado resistência aprendida”, explica Danilo Benette Marques, pesquisador da FMRP-USP e primeiro autor do artigo.
Durante os experimentos, os pesquisadores foram registrando a atividade elétrica no hipocampo e no córtex pré-frontal dos animais. Eles explicam que as duas regiões cerebrais foram amplamente associadas aos efeitos do estresse e da depressão em estudos anteriores.
Os resultados foram então analisados por meio de técnicas de aprendizado de máquina, ramo da inteligência artificial que permite trabalhar com grandes volumes de dados e automatizar a construção de modelos analíticos. O algoritmo aprende com os dados a identificar padrões ou tomar decisões.
Ritmo neural da resiliência
“Pudemos realizar uma investigação extensa das atividades cerebrais durante o estresse e descobrimos oscilações neurais que distinguiam os animais resistentes dos desamparados. O interessante é que essas oscilações na atividade elétrica do cérebro poderiam ser verificadas por eletroencefalografia [EEG, método não invasivo], o que ajudaria a orientar tratamentos personalizados para depressão, ansiedade e transtorno de estresse pós-traumático”, ressalta Marques.
Os pesquisadores observaram nos animais resistentes aumento de oscilações nas frequências entre 5 e 10 hertz, conhecidas como oscilações teta (θ). “Não estamos falando de uma maior quantidade de atividade neuronal e sim de uma sincronicidade dessa atividade em uma mesma frequência. A atividade do cérebro tende a ser desordenada, sem um padrão claro. Entretanto, em momentos associados a alguma atividade cognitiva ou comportamental, ele apresenta um padrão periódico, com uma oscilação muito clara que pode durar segundos. Nesses casos é a oscilação teta”, explica Rafael Naime Ruggiero, bolsista da FAPESP e coorientador do estudo.
Ruggiero explica que o fenômeno nada mais é que uma sincronização de um conjunto de neurônios. “Portanto, o que se observa para oscilações neurais no geral é que um input faz com que os neurônios se despolarizem [ocorre uma deflexão da onda] e depois eles voltam a ser regularizados. A onda [frequência] vai e volta e isso acontece de modo periódico”, explica.
Pereira Leite ressalta que o entendimento desses padrões de atividade rítmica cerebral pode contribuir para o tratamento de pacientes psiquiátricos. Afinal, sabe-se que experiências traumáticas (e estressantes) são fatores de risco para o desenvolvimento de transtornos mentais, entre eles ansiedade generalizada, depressão maior e estresse pós-traumático.
Em um estudo mais recente, disponível em versão preprint (sem revisão por pares) na plataforma bioRxiv, os pesquisadores demostraram que a sincronia de várias regiões cerebrais nas frequências teta está envolvida no enfrentamento ao estresse, não só quando este tem um valor aversivo (como escapar de um choque), mas também em situações positivas, como conseguir uma recompensa.
Dessa forma, de acordo com o estudo, as relações positivas entre a atividade cerebral e os processos comportamentais associados à resiliência indicam um potencial terapêutico.
“Os resultados possibilitam o uso de estratégias não farmacológicas para o tratamento desses indivíduos. É o caso da neuromodulação, que visa estimular determinadas regiões cerebrais e fazer com que o indivíduo reproduza a atividade teta, eventualmente obtendo um resultado mais positivo que o uso de medicamentos psiquiátricos”, diz Pereira Leite.
Além disso, ao entender melhor o funcionamento do córtex pré-frontal e do hipocampo, torna-se possível buscar terapias mais específicas.
“No caso dos antidepressivos, por exemplo, eles são tomados por via oral e atuam nas sinapses e em neurotransmissores de todo o cérebro. O estudo mostrou que a maior resiliência ou o próprio desamparo podem envolver circuitos e dinâmicas cerebrais particulares, não o cérebro como um todo. É possível identificar regiões ou interações entre regiões que vão ser muito importantes para guiar o desenvolvimento de novos tratamentos psiquiátricos mais eficazes e com menos efeitos colaterais. Desse modo, o medicamento não precisaria mexer na serotonina do cérebro todo, por exemplo”, explica Pereira Leite.