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Cidade Invisível retorna para se explicar… e se complica

Esforços da série para ter uma identidade nacional ficam perdidos em um texto didático e infantil.

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Como quase todas as séries nacionais que preenchem os catálogos de streaming, Cidade Invisível é cheia de boas intenções. O Brasil está cercado de problemas ambientais cada vez mais opressores e o descaso governamental dos últimos anos piorou a sensação de que nossos recursos naturais e nosso povo nativo estão entregues à própria sorte. A negligência transborda e usar a dramaturgia para falar sobre isso nunca foi tão relevante.

Esse era um dos problemas que a série da Netflix enfrentava quando fez sua primeira temporada, lá em 2021. O showrunner Carlos Saldanha se inspirou no clássico dramatúrgico de trazer para a nossa realidade, para andar entre nós, pessoas que personificassem entidades ou personagens mitológicos. No passado, a série Arquivo X (1993) já brincava com isso, fazendo com que Mulder e Scully se deparassem com lobisomens, vampiros, chupa-cabras e até com o gênio da lâmpada. A ideia era fazer com que eles fossem comuns, geralmente irônicos e irritados com como vem sendo retratados pela cultura pop através dos anos. Mesmo em Once Upon a Time (2011) essa premissa já tinha sido usada com sucesso, com personagens de contos de fadas vivendo numa cidade de interior sem saber que eram personagens de contos de fadas. Novamente, a graça estava em ver como as características desses personagens iriam aparecer lentamente na história.

Contudo, talvez a relação mais direta seja com American Gods (2017), a adaptação da obra de Neil Gaiman que naufragou terrivelmente nas águas do Prime Video. Lá, os deuses clássicos e modernos se cruzavam numa história densa, apocalíptica, que se levava a sério demais e pecava pela falta de sutileza. Cidade Invisível se apresentou ao público usando a mesma diretriz, colocando um personagem com uma vida simples diante da descoberta de que criaturas folclóricas estão espalhadas entre nós. E fazendo isso em pleno centro do Rio de Janeiro.

Os objetivos daquela primeira temporada eram apenas reproduzir essa dinâmica. O público se divertia em tentar descobrir quem era quem nessa salada de mitos (o que não demorava muito considerando a escrita direta dos roteiristas); e o enredo era completamente dramático, emulando uma fotografia pesada e causando a estranheza de ter criaturas folclóricas características do norte e nordeste do país, aglomeradas numa floresta carioca. Embora o tratamento visual delas fosse bastante competente, algo sempre parecia fora do lugar.

Problema Visível 

A primeira temporada não resistiu aos clichês do gênero. O que começava com um desenvolvimento elegante foi se transformando em um rocambole sobre possessões, poderes e até ressurreições. Lá pelo final, pouco importava manter preservado o campo de verossimilhança que a trama estabeleceu para si. Em nome do “gancho”, essa realidade foi se distendendo até que tudo fosse possível e nada fosse inalcançável. E sabemos que quando o fantástico não tem regiões limítrofes, ele se perde.

Depois de um longo hiato, a série voltou disposta a responder ao menos às acusações de que estava usando o folclore brasileiro para reproduzir modelos narrativos norte-americanos. A segunda temporada avança dois anos e mostra a filha de Eric (Marco Pigossi) em busca de uma maneira de trazê-lo de volta. Junto com Inês (Alessandra Negrini), ela chega ao Pará e com isso, o folclore usado na dramaturgia “retorna para casa”. Em apenas 5 episódios, a série precisa estabelecer uma nova trama, apresentar novos personagens e abrir caminho caso haja a intenção de continuar.

Os problemas surgem imediatamente. Não existe qualquer contextualização para a mudança de cenário e em grande parte do tempo parece que estamos diante de uma antologia e que essa é uma série completamente nova. Dessa vez a problemática central é diretamente ligada às questões de exploração ambiental, o que, inevitavelmente, também toca nas questões indígenas. Saldanha fez a lição de casa nesse sentido e foi atrás de um elenco adequado, de grandes atrizes nativas, o que demonstrou a vontade de ser cuidadoso com detalhes importantes.

A trama se divide em dois pontos: a busca por Marangatu (uma dimensão espiritual que a série transformou numa espécie de Eldorado local) – dominada pelo núcleo de brancos e índios – e a busca de Eric pela filha, ao mesmo tempo em que ele desenvolve um oportuno “poder” de absorver as habilidades de todos os seres folclóricos que encontra. Esses dois caminhos não conseguem funcionar de maneira complementar, e considerando que a trama indígena é muito mais interessante e orgânica, a presença de Eric e Inês é quase fantasmagórica. Ambos foram esvaziados pelo novo enredo.

No novo grupo de atores para esse ano, Letícia Spiller, Simone Spoladore e Zahy Guajajara dominam com interpretações esforçadas. Letícia foi atrás de uma construção mais detalhada de corpo e voz, mas Simone e Zahy se dedicam às personagens mesmo que o texto raso não as ajude no processo. A falta de direção de atores da primeira temporada se agrava na segunda, inclusive. Pigossi está no piloto automático e Negrini segue monocórdia (um desperdício para o tanto de diversão que ela poderia extrair de uma entidade como a Cuca).

Com apenas 5 episódios nas mãos, os roteiros sofrem para organizar o processo de conhecer, explorar e revelar os segredos dos novos personagens. Desde a primeira temporada que a abordagem aos personagens folclóricos era um pouco esquisita, com um enfoque questionável no sofrimento dessa condição. Agora, o quadro se agrava quando a mitologia da série assume a ideia de que pessoas comuns são “contaminadas” com uma espécie de “maldição”. É contraditório. Se essa é uma série sobre o poder da natureza, se é uma celebração dela, por que o folclore é tratado como se estivéssemos vendo um miserável capítulo dos Mutantes da Record?

Por um momento parece que Saldanha quer arrumar a casa para uma possível terceira temporada, mas a sequência final parece estabelecer de uma vez por todas que não existem regras no universo da produção. Bem ali, no núcleo da floresta, existe um mundo de possibilidades mágicas que se conecta com povos nativos e cria um cenário lindo, que na vigência social, poderia construir uma interessantíssima história de afeto, mitologia e política. Cidade Invisível não sai da superfície. Os diálogos são didáticos, infantis, cheios de frases feitas e solenes. Um reforço lamentável da crise textual que assola nossa produção audiovisual. Todos se preocupam demais com a forma e quase nada com o conteúdo. Isso sim… é visível.

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