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Rádio Mulher: o veículo que enfrentou o machismo nos anos 1970 e acabou perdendo

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A Sociedade Esportiva Palmeiras e a Associação Portuguesa de Desportos se preparavam para um amistoso na noite de 15 de junho de 1971.

Enquanto os jogadores se trocavam no vestiário e conferiam os últimos detalhes antes de entrar em campo, narradores e comentaristas se organizavam para a transmissão de rádio nas cabines do antigo Estádio Palestra Itália.

A data é significativa porque marca uma revolução: a introdução das mulheres no mundo da narração esportiva por meio da Rádio Mulher. Naquele dia, a voz de Zuleide Ranieri (1945-2016), responsável pela narração da partida, ecoou no estádio.

Ela foi a voz da Rádio Mulher que atraiu homens e mulheres para acompanhar os grandes clássicos do futebol brasileiro. E, ao longo de sua trajetória na rádio, foi responsável por bordões icônicos, como “Uma mulher a mais no estádio, um palavrão a menos”.

A história de pioneirismo, porém, começou um pouco antes. Comprada em 1969 com o nome de Santo Amaro AM pelo empresário Roberto Montoro, a rádio passou por uma profunda reformulação.

O executivo não perdeu tempo e, no ano seguinte, transformou a estação na Rádio Mulher, após conversar com seu irmão e sócio, Antonio Montoro, e a então diretora-administrativa da empresa, Aurora Portela.

Em 1970, apenas profissionais do sexo feminino tinham espaço na equipe da 930 AM. A programação era elaborada por mulheres (para mulheres) — uma verdadeira revolução no meio da comunicação no país.

A grande inovação, no entanto, aconteceu no ano seguinte, quando a programação abriu espaço para o futebol, e foram contratadas jornalistas para cuidar do departamento esportivo.

O jogo entre Palmeiras e Portuguesa terminou dois a zero para a equipe alviverde — e o trabalho feito pela Rádio Mulher chamou a atenção. Em pouco tempo, a estação se tornou referência, e o público foi crescendo partida após partida. Ao longo daquele ano, a equipe transmitiu a Copa Roca e a primeira edição do Campeonato Brasileiro.

Dali surgiram nomes importantes do jornalismo brasileiro, como Germana Garilli, repórter de campo, Jurema Yara e Leilah Silveira, comentaristas, e Claudete Troiano, também repórter de campo e segunda narradora, revezando com Zuleide.

CRÉDITO,MUSEU DO FUTEBOL

As mulheres da estação 930 AM conquistaram o público, e a audiência da rádio cresceu ao longo do tempo

“Não existia clima ruim de trabalho. Não sei se era porque a gente estava tão focada. Já era tão difícil entrar em um campo totalmente ocupado por homens em todos sentidos — por críticos, jogadores, torcedores —, então entre nós foi sempre tudo muito bem”, diz Claudete sobre a união da equipe durante os trabalhos esportivos da Rádio Mulher.

A Rádio Mulher também apresentou outra inovação na transmissão de partidas de futebol no Brasil: a introdução de uma comentarista de arbitragem, Léa Campos. A ideia de colocar uma ex-árbitra para analisar os lances polêmicos acabou sendo vista como revolucionária. A TV Globo, por exemplo, só tomou uma iniciativa semelhante em 1989, com Arnaldo Cezar Coelho.

Claudete, que ficou famosa por apresentar programas na TV aberta, como o “Note e Anote”, da Record TV, destaca que a Rádio Mulher foi pioneira não apenas para o jornalismo esportivo, mas também para o esporte em geral.

“O espaço das mulheres vem crescendo e muito. Se você levar em conta que a mulher tinha que se vestir de palhaço para se disfarçar para poder jogar futebol, que quando a gente começou, lá na década de 1970, clubes de futebol feminino, como o Radar de Pernambuco, estavam dando os primeiros passos, olha só como isso cresceu”, avalia.

“Hoje temos jogos de futebol feminino recebendo grandes plateias, com o torcedor apoiando. E a mulher tem ocupado todos os espaços no rádio, na TV e em todas as mídias com muita sabedoria.”

O machismo dos colegas de trabalho

As mulheres da estação 930 AM conquistaram o público. A audiência foi crescendo, sobretudo entre o público masculino. Isso gerou incômodo por parte de jornalistas homens — muitos deles resistiam à ideia de mulheres trabalhando com futebol.

Parte dessa visão era herança do Decreto-Lei 3199, sancionado em 1941 pelo então presidente Getúlio Vargas. O texto proibia a “prática de esportes incompatíveis com a natureza feminina”, incluindo o futebol. O documento só foi revogado em 1979.

“Havia machismo naquela época. Eu narrei futebol, mas comecei como repórter de campo. A narradora principal era a Zuleide, e eu fiquei um tempinho fazendo reportagem de campo, porque fui contratada pela Rádio Mulher por causa das minhas reportagens em outras emissoras de rádio. Na reportagem, eu sentia o machismo”, relembra Claudete.

“Na época, os repórteres eram o Faustão, Cândido Garcia, só gente fera no campo. Eles ficavam meio desconfiados, soltavam algumas informações que não eram corretas só para ver se você caía, passava essa informação para a torcida. Também tinha o espanto da torcida, porque não estava acostumada com mulher dentro de campo até chegar a nossa equipe, que era muito jovem. Só tinha uma fotógrafa que já tinha uma idade avançada e trabalhava no Estadão”, conta a apresentadora.

Era uma época em que apenas 18% das mulheres trabalhavam fora de casa, de acordo com a Fundação Carlos Chagas. E a crença de que “futebol é coisa de homem” era bastante difundida.

O preconceito em relação às mulheres estava refletido nas restrições que a equipe da rádio sofria. Proibidas de entrar nos vestiários — enquanto jornalistas homens tinham acesso ao local para entrevistar atletas e dirigentes —, as repórteres da 930 AM encontraram outra solução para informar os ouvintes.

“A gente fazia amizade com mãe, namorada e esposa de jogador. Então a gente tinha informações da vida dos jogadores, porque os outros repórteres não se preocupavam com isso. A gente se virava como podia”, recorda Claudete.

“Existia machismo naquela época. Até hoje existe. Durante muito tempo, depois do nosso trabalho que durou cerca de cinco anos, a mulher ainda era utilizada apenas como decoração nos programas esportivos de televisão, imagina naquele tempo”, acrescenta.

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A rádio é lembrada até hoje como um importante avanço das mulheres no esporte

A derrocada da Rádio Mulher

Não há informações detalhadas sobre o fim da Rádio Mulher, mas um dos motivos alegados para o fechamento da estação foi a falta de patrocínio. Muitas empresas não acreditaram nos projetos da emissora, inclusive do departamento de esporte, que era sucesso de audiência.

Embora a programação fosse feita por mulheres, a audiência da estação era, em sua maioria, masculina — e diante da pressão do mercado publicitário, Roberto Montoro decidiu convidar jornalistas homens para fazer parte da equipe. A ideia era manter a audiência e, ao mesmo tempo, atrair patrocinadores. Não deu resultado.

Pelé, considerado por muitos como o maior jogador de futebol de todos os tempos, chegou a cogitar levar o projeto à Rádio Clube de Santos, da qual era proprietário. Só que o plano não deu certo, porque ele deixou o futebol brasileiro e foi morar nos Estados Unidos para jogar no New York Cosmos.

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Apesar de pioneira, a rádio acabou fechando, entre outros motivos, por falta de patrocínio

Em 1976, já sem boa parte da equipe que iniciou o projeto, a Rádio Mulher chegou ao fim. Mas Claudete tem convicção de que o trabalho da rádio permitiu que outras mulheres conquistassem seu espaço no mundo do futebol.

“Acho que a gente, da Rádio Mulher, colaborou para tudo isso. Sempre tem que ter alguém para abrir uma porta, jogar uma luz e colocar uma ideia na cabeça para as coisas acontecerem. Acho que ali foi uma sementinha importante que a Rádio Mulher plantou, e eu tive o prazer de participar. Tenho muito orgulho disso”, diz ela.

Novas conquistas

Hoje, a situação é bem diferente. As jornalistas Renata Fan e Glenda Kozlowski, por exemplo, são referências por estarem há décadas comandando programas de futebol na TV aberta.

Mas as mulheres seguem conquistando seu espaço no jornalismo esportivo. Em 2022, Ana Thaís Matos se tornou a primeira jornalista mulher a comentar jogos da Copa do Mundo de Futebol Masculino na Globo, e Renata Silveira, a primeira narradora mulher da emissora.

“Não tínhamos noção que estávamos abrindo um campo de trabalho tão importante”, afirma Claudete Troiano.

“Lamento que a rádio tenha chegado ao fim, porque a família Montoro é maravilhosa. Agradeço ao seu Montoro e a sua família pelo que fizeram pela gente. Foi muito importante para as mulheres.”

Fonte: BBC Brasil

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