Em 1994, durante a divulgação do Festival Mix Brasil (que exibia filmes com a diversidade como temática), os criadores do evento Suzy Capó e André Fischer usaram e popularizaram no Brasil a sigla GLS; um acrônimo para Gays, Lésbicas e Simpatizantes, que ainda que tenha nascido como estratégia mercadológica, tomou o país rapidamente como expressão social.
A sigla GLS se alastrou mais entre as pessoas cis-heteros que na própria comunidade de gays e lésbicas. Até hoje, é comum encontrar celebridades heterossexuais que ainda usam a sigla como se ela lhes delegasse certa permissão para “adentrar o terreno”. Os tais “simpatizantes” se sentiam livres do rótulo do preconceito e a sigla virou distintivo de quem queria praguejar equívocos sem ser julgado. Por definição, a palavra “simpatia” não invoca posicionamento eloquente. Você não tem que gostar mesmo, conviver mesmo… você tem “simpatia”.
Em 2008, em uma conferência nacional do movimento de gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais, ficou decidido que a sigla oficial seria LGBT, o que, mais tarde, foi evoluindo de acordo com o reconhecimento de outras condições. A sigla passou a ter letras adicionais sempre que o contexto exigia; mas recebeu o “+” como forma de abreviar toda a amplitude do acrônimo. É comum encontrar quem conteste a “necessidade” da sigla, mas isso geralmente parte de quem ignora que numa sociedade treinada para tornar invisíveis ou ameaçadas as pessoas que não se enquadram em heteronormatividade, a sigla se tornou uma questão de visibilidade; uma forma de exigir e reconhecer um lugar na ordem geral das coisas.
Na TV do Brasil e do mundo, a maioria das histórias que abordam diversidade estão centradas no G e no L da sigla. Muito lentamente, personagens gays e personagens lésbicas passaram para o proscênio da televisão e começaram a ter mais representatividade. A letra T, de transgênero, foi a próxima a começar a encontrar aberturas dentro de produtos de maior alcance. Contudo, ainda há muito o que explorar quando se trata do que vem depois do T. Por isso, separamos aqui algumas produções que celebram o “+” dessa equação, feita do material da verdade e da coragem.
UNIQUE E MO (GLEE E ZOEY’S EXTRAORDINARY PLAYLIST)
Quando Glee estava no seu auge, entre 2010 e 2011, Ryan Murphy e sua equipe venderam para o canal Oxygen uma ideia bastante interessante: submeter 12 jovens a testes semanais de canto, dança e interpretação para que, ao final da competição, um deles ganhasse a chance de viver um arco de 7 episódios na série. A primeira temporada deixou o showrunner tão encantado que ao invés de m vencedor ele escolheu dois. Além disso, deu ao terceiro e quarto lugar a chance de aparecer em dois episódios cada um.
Alex Newell estava no elenco do reality e lá pela metade da competição, foi parar na berlinda, onde três competidores cantavam para se salvar, em frente a Ryan. O criador de Glee ficou maravilhado quando Alex entrou para cantar vestido de mulher. A partir dali, a obviedade de Alex como maior representante do espírito de Glee saltava à tela. Mas Ryan precisava de um “novo Finn” e desviou dessa lógica. Alex voltou para fazer seus dois episódios… e não saiu nunca mais. Unique, sua personagem, se tornou um dos maiores acertos da série.
Em Glee, Unique começou como um rapaz que só se vestia de mulher eventualmente. Conforme sua história foi progredindo, Unique tomou a frente e permaneceu forte até sua última aparição efetiva, no último ano, cantando “I Know Where I’ve Been” com um coral de mais de 300 pessoas trans.
Alguns anos depois do fim da série, Alex entrou no elenco de Zoey’s Extraordinary Playlist, onde vivia Mo, uma personagem não-binária que era irresistível do começo ao fim. Unique foi o momento de chutar a porta da conformidade (e esse tipo de narrativa é importante). Com Mo, Alex estabeleceu a naturalidade da não-binaridade usando o texto não-burocrático a seu favor. Mo era fabulose, forte, engraçade, sedutore… E não se enquadrar em nenhuma norma de gênero não era o resumo de sua presença na série.
Recentemente, Alex voltou a se marcar na história como primeire artista não-binário a vencer o Tony Awards, prêmio mais importante do teatro americano, por sua performance em Shucked. Na cerimônia, Lea Michele apresentou um número de Funny Girl, mesmo espetáculo do qual sua personagem em Glee fez parte.
Enfim, mais full circle que isso não há.
DR. KAI (GREY’S ANATOMY)
Grey’s Anatomy foi uma das séries mais preocupadas com diversidade dentro do circuito de abrangência que títulos como esse têm. A série não é considerada uma série de “nicho” e é vista no mundo todo, por todo tipo de público. Por conta disso, quando a bissexualidade de Callie (Sara Ramirez) se tornou evidente, o acesso às discussões teve um grande e bem-vindo alcance.
De lá para cá, além de outros personagens se enquadrarem nas letras G e L da sigla, tivemos a chegada do primeire personagem não-binário da série. Dr. Kai apareceu na temporada 18 e engatou um romance com Amelia (Caterina Scorsone). A relação não escapou de alguma problematização em torno do que diferenciava as duas personagens; sobretudo porque estamos falando de Amelia, a personagem mais lamuriosa que Grey’s já teve. Mesmo assim, Kai alargou um pouco o tópico da série quando se trata de relacionamentos; não só por conta de sua presença em si, mas em como elu desafia Amelia em suas convenções.
NICK NELSON (HEARTSTOPPER)
E por falar em bissexualidade, a abordagem a esse tipo de orientação tem sido muito cobrada pela comunidade, que raramente se vê devidamente representada na TV. O problema tem raízes na forma como atos bissexuais foram usados por roteiristas – sobretudo entre os anos 90 e início dos anos 2000 – como uma forma de chocar o espectador, ou como uma forma de apontar um traço de diversidade sem ter que lidar com as responsabilidades disso. Foi o que levou Josh Schwartz, por exemplo, a fazer com que Marissa (Micha Barton) tivesse um romance com a personagem de Olivia Wilde, em The OC; ou o que levou Michael Patrick King a trazer Sonia Braga para ter um affair com Samantha Jones (Kim Catrall), em Sex And the City.
Outro problema era a forma como a bissexualidade era usada como “trilha de transferência” de personagens entre a hetero e a homossexualidade. Foi a estratégia de Kevin Williamson em Dawson’s Creek, por exemplo. As intenções do criador eram as melhores possíveis, querendo “enganar” o estúdio fazendo primeiro com que Jack (Keer Smith) se envolvesse com Joey (Katie Holmes) e aos poucos fosse saindo do armário. Isso fez com que o personagem fosse melhor aceito, mas ajudou a perpetuar essa ideia de que a bissexualidade é elusiva, quase inacreditável, transitória.
Essa acaba sendo uma preocupação constante. Recentemente, Nick (Kit Connor) passou por um processo de entendimento a respeito da própria sexualidade – na primeira temporada de Heartstopper – numa cena com Olivia Colman que sensibilizou o mundo todo. Resta saber se a série conseguirá continuar abordando esse tópico de uma maneira sensata e madura.
TODD (BOJACK HORSEMAN)
A assexualidade é outro tema que aparece na dramaturgia com certa hesitação. Aqui no Brasil, o tema chegou a ser abordado na novela Travessia, de Glória Perez, que já tinha feito um ótimo trabalho com questões trans em sua novela anterior, Força do Querer. Contudo, a abordagem dos tipos de assexualidade proposta pela novela Travessia passaram por um filtro burocrático que em nada ajudava o núcleo a andar. Era puro didatismo, sem o menor apelo emocional.
Na terceira temporada da aclamada animação BoJack Horseman, o personagem Todd Chavez admitia não se sentir nem gay nem hetero; ele dizia apenas que não era “nada”. Era uma posição confortável, que buscava a não-rotulação de um sentimento de desajuste muito comum com quem não se identifica com a carga de sexualização que rege praticamente todos os setores da sociedade.
É muito difícil encontrar personagens assexuais em qualquer gênero televisivo – ou mesmo cinematográfico. E a razão para tanto pode ser tão lógica quanto irônica. A maioria das narrativas do mundo se baseia em conflitos românticos. A assexualidade esbarra na obrigatoriedade de outras construções dramáticas; o que, infelizmente, a maioria dos roteiristas não está interessada em desenvolver.
LAUREN (FAKING IT)
Se é difícil encontrar personagens não-binários, bissexuais e assexuais na TV, imagine então encontrar personagens intersexuais? A intersexualidade, especialmente no Brasil, esbarra na confusão com um termo que acabou sendo popularizado também por uma novela. Em 1993, Maria Luisa Mendonça despontava no horário nobre como a personagem Buba, de Renascer; uma mulher que era chamada na trama de hermafrodita. Como acontecia muito com personagens queers, a condição de Buba era usada para fazer um suspense jocoso, jogando com a discrepância entre a aparência extremamente feminina e o nome de batismo da personagem (Alcides). Além disso, era insinuado que Buba possuía tanto a genitália feminina quanto a masculina, um equívoco cometido constantemente a respeito da intersexualidade.
O termo “hermafrodita” caiu em desuso e não é mais atribuído a quem vive com a condição intersexual que, em descrição mais simples, seria o mesmo que ter uma construção cromossômica masculina, com testículos internos, por exemplo, mas uma aparência exterior extremamente feminina. O que é, nesse caso, o mesmo que vivia a personagem Lauren (Bailey De Young), na comédia Faking It, que ficou no ar pela MTV por três anos, entre 2014 e 2016. Como acontece com muitos bebês que nascem intersexuais, os pais da personagem decidiram remover seus testículos internos em uma cirurgia, o que obrigava a personagem a tomar pílulas para reposição hormonal constantemente.
Já sabemos que Renascer será a próxima novela a ter um remake no horário das 21 e será o momento de corrigir os erros. Se nas séries que chegam ao mundo ainda estamos longe de um alcance real das questões intersexuais, aqui no Brasil, teremos uma chance de dar a essas pessoas a representatividade que elas merecem.
Mais importante que levar ao público conhecimento básico sobre várias dessas condições, a teledramaturgia tem um papel ainda mais comovente, que é estabelecer a evidência do afeto, do coração, da alma que une todos nós. Nenhum desses personagens é só isso, nenhuma abordagem à diversidade deveria ser só isso. Mas é importante ser isso, até que não seja mais necessário esclarecer nada, porque já teremos compreendido que mais importante que as definições, são os afetos.
Um dia chegaremos lá… um dia.