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Voltou a morar com os pais na pandemia? Como ter uma convivência saudável

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Dizer que 2020 foi um ano cheio de surpresas esquisitas e que estragou os planos da maioria da população global é quase redundante. Mas, de todos os cenários improváveis que eu pudesse imaginar para o ano que passou, jamais teria apostado que, aos 29, estaria vivendo de volta com meus pais em Florianópolis — seis anos depois de sair de casa, três dos quais vividos em outro país. Acho que se tivessem me dito que extraterrestres invadiriam a Terra, teria achado mais plausível.

Voltar para o lar onde cresci, por mais confortável que me sinta nele, sempre representou para mim um fracasso pessoal, algo que eu aceitaria somente em situações extremas, como incapacidade de me sustentar sozinha ou problema de saúde. Não que a gente não se dê bem. Por sorte, nunca tive problemas na família, com exceção de algumas brigas aqui e ali sobre afazeres domésticos e horários para estar em casa. Mas saí por motivos profissionais e, conforme os anos passaram, vi a convivência familiar melhorar com a distância, e adquiri meus próprios hábitos. Abrir mão de tudo isso estava fora de cogitação.

Conforme o ano foi passando, porém, descobri que não fui a única a ceder — ao contrário: ao  longo da pandemia de Covid-19, milhares de pessoas fizeram o mesmo movimento de voltar a morar com os pais. Em minha pequena bolha de amigos, fiz uma enquete com mais ou menos 65 pessoas, das quais 12 afirmaram ter passado a quarentena com os pais. Uma estimativa bem mais séria, feita pelo grupo de banco de dados imobiliários Zillow, apontou que, nos Estados Unidos, quase 3 milhões de pessoas, principalmente jovens, voltaram a viver com seus familiares por causa da crise do novo coronavírus. “É um drama inédito, nunca vi um movimento desse tamanho e intensidade em 53 anos de vida e 20 de psicologia”, comenta o psicólogo clínico João David Cavallazzi Mendonça, especialista em terapia de família e professor no Instituto Familiare, em Florianópolis. “É uma experiência muito nova, porque para a maioria foi uma ruptura, não foi algo voluntário.”

Os motivos, observa Mendonça, foram os mais variados, e intensificados pela duração da pandemia. Houve quem, assim como eu, estava na casa dos pais quando a quarentena foi declarada, acreditou que não seria por muito tempo, pretendia ficar um mês e acabou ficando oito. Outros sentiram a necessidade de cuidar de pais em grupos de risco. Há aqueles que decidiram aproveitar a flexibilização nos empregos e o trabalho remoto para se refugiar no aconchego do antigo lar. E ainda quem precisou se mudar por motivos econômicos — redução de carga horária e de salário, ou mesmo desemprego, que no Brasil bateu recorde em setembro: o índice chegou a 14%, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o mais alto desde maio de 2020.

Uma combinação das últimas duas alternativas foi o que levou o designer Marcos de Lima, um dos meus amigos que participou da enquete, a voltar para Recife depois de seis anos morando sozinho em São Paulo. “Meu emprego era remoto e não estava legal, eu até gostava do trabalho, mas a grana estava ficando difícil”, conta. Sabendo que o contrato de aluguel venceria em novembro, foi “empurrando com a barriga”, na esperança de que a situação melhorasse até lá. “Vi que muita gente começou a se mudar e voltar para a casa dos pais, comecei a me perguntar ’será que faço isso também?’”, lembra. “Eu estava muito relutante, porque iria fazer 30 anos e não queria perder a minha independência, mas seria uma boa oportunidade de economizar.”

Em agosto, tomou a decisão: comprou uma passagem só de ida para Recife. A partida seria em novembro, oito dias depois de completar o trigésimo aniversário, um gesto simbólico de que ao menos passaria por esse marco importante da vida com sua independência intacta. “A rotina na minha casa é muito diferente de quando eu saí, pois minha família se mudou para um apartamento menor e voltei a dividir o quarto com minha irmã”, relata. “Parece um pouco férias ainda, mas procuro não bater de frente com eles, porque a gente divide a casa, é uma relação meio de roomie [termo em inglês para colegas de quarto]”

Adaptação mútua

Independentemente dos motivos, voltar para a casa dos pais pode ser mais complicado do que parece. “Não é algo tão simples, porque o filho adulto já teve a experiência de ter a própria casa”, explica a psicóloga Blenda de Oliveira, da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP). “Quando [o filho] saiu, ele começou a construir uma forma própria de estar no mundo, dando um passo em direção a uma maior autonomia.”

O retorno requer uma adaptação de ambos os lados, pois assim como os filhos criaram os próprios hábitos, os pais também desenvolveram uma nova rotina. “Vai haver estranhamento, é preciso se adaptar novamente a viver junto”, avisa Oliveira. O psicólogo Mendonça completa: “quem volta, não volta como filho, mas como adulto. Isso demanda um ajuste na configuração da família para aprender a conviver de uma forma diferente, como se fosse um update [atualização] na relação. Não dá para pensar que a família vai voltar a ser o que era antes de o filho ir embora.”

Tudo depende principalmente da dinâmica familiar e de como o retorno foi encarado. “Se vocês sempre tiveram uma relação em que o diálogo prevalece, na qual existe maturidade para discutir problemas, a adaptação é menos complicada”, diz Oliveira. Em famílias com muitas brigas, a situação fica mais difícil — especialmente quando o contexto de pandemia deixa os ânimos acirrados. Pode haver conflitos em relação à forma como a família lida com as medidas de prevenção (sair ou não de casa? Quantas vezes por dia ou semana? Está permitido visitar amigos?) e até discórdias sobre questões políticas que têm se tornado frequentes no dia a dia dos brasileiros.

O retorno, por si só, também pode provocar atrito, pois representa uma ruptura no processo de emancipação, e gerar frustrações se encarado como fracasso ou retrocesso. Para explicar de onde vem tal entendimento, Mendonça recorre à teoria do Ciclo de Vida Familiar, desenvolvida pelas autoras americanas Monica McGoldrick e Betty Carter nos anos 1980. Segundo elas, o ciclo de vida de uma pessoa acontece dentro da família e pode ser dividido em várias fases. Uma delas é a da emancipação. “Nessa perspectiva, a volta para casa pode ser considerada uma ameaça ao andamento dos ciclos, é como se o jovem voltasse a uma fase anterior e pode surgir a ideia de que ele está dando um passo atrás”, explica o psicólogo.

Sem traumas

É preciso levar em conta, porém, o momento excepcional em que vivemos. “O desafio é olhar para o contexto da pandemia, e não para o retorno em si, que não é responsabilidade de ninguém e estava fora do controle”, orienta Mendonça. “É uma experiência nova, mas também transitória, então se ambos os lados compreenderem isso e tiverem empatia e tolerância, é possível ressignificar a situação e encontrar estratégias de enfrentamento.”

Na prática, trata-se de adotar uma postura de “estamos juntos nessa”, ou de “virei roomie dos meus pais”, da mesma forma que eu e (como descobri depois) meu amigo adotamos. Não significa tolerar tudo e não impor limites, e sim estar disposto a abrir mão de algumas coisas em troca de outras. Aqui em casa, por exemplo, mutirões de faxina se tornaram comuns, com regras definidas de quem limparia o quê; eu e minha mãe começamos a cozinhar juntas, em uma tarefa que se tornou lazer; e meu pai, acostumado a simplesmente entrar no meu quarto e me interromper quando bem entendia, finalmente aceitou a necessidade de bater na porta — em compensação, passei a me esforçar para pausar o que estava fazendo para cumprimentá-lo quando ele voltava do trabalho.

Minha experiência, é claro, é só mais uma dentre milhares, e nem todos os jovens têm tamanhos privilégios. Mas, segundo os especialistas, exemplifica como a maneira de lidar com uma crise é essencial para a forma como saímos dela. “Há muitas situações em que o mesmo princípio pode ser aplicado, como a separação dos pais”, diz o psicólogo. “Dependendo de como ela é abordada, não necessariamente implica trauma, é possível passar por ela e sair com aprendizados.”

Foi meu caso: considero que a experiência serviu para fortalecer nossa relação, e passei a brincar que não quero mais ir embora e eles terão que me aguentar para sempre — o que não é verdade, visto que já planejo me mudar enquanto tudo está bem, justamente para não correr o risco de azedar a relação.

Ainda que o fim da pandemia não esteja próximo e não haja previsão de volta à normalidade, os especialistas destacam a importância de entender o momento de ir embora novamente. “A hora de sair é quando o filho percebe que está na hora de ter o próprio canto, e às vezes está tudo bem, não precisa parecer uma ruptura, até porque as rupturas parecem repentinas, mas na verdade já são reflexo de situações intoleráveis há tempos”, observa Oliveira.

Para mim esse momento chegou, mas para muitos outros jovens na mesma situação ou para quem acabou de completar o movimento de retorno, como meu amigo de Recife, pode ser que não — e está tudo bem. “Não é uma decisão entre certo e errado, é um dilema mesmo”, conclui Mendonça. O importante é lembrar que não se tratam de casos isolados e aceitar que não podemos controlar todas as experiências de nossas vidas, entre elas a de ser adulto e ter que voltar a morar com os pais.

Fonte: Galileu

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