Dois anos depois de ter sido uma das personagens do especial Falas da Terra, exibido pela Globo em homenagem ao Dia dos Povos Indígenas (19 de abril), a cineasta Graciela Guarani está de volta ao projeto de uma forma diferente. Desta vez, ela é consultora e uma das roteiristas e diretoras da antologia Histórias Impossíveis. O episódio “Pintadas”, em que ela divide a direção com Thereza de Medicis, e que tem como protagonistas três jovens indígenas, vai ao ar na Globo nesta segunda-feira (17), depois do BBB.
Graciela diz que ficou surpresa para o convite para a direção. “Normalmente me chamam pra ser assistente, então fiquei bem surpresa de uma forma positiva. Foi bom pra conhecer a dinâmica [da TV], é diferente do cinema, de onde eu venho. Mas eu gostei muito do resultado”, disse ela, em entrevista ao Omelete, durante sua passagem pelo Rio2C. “Foi um processo muito intenso, porque a gente estava gravando num período de chuva e era quase 100% de externas.”
Na trama de suspense, Luara (Ellie Makuxi), Josy (Dandara Queiroz) e Michele (Isabela Santana) pretendem gravar um clipe de rap na floresta, mas encontram a natureza destruída e se veem mergulhadas na ancestralidade de seus povos graças a acontecimentos fantásticos.
Neste episódio da série criada por Renata Martins, Grace Passô e Jaqueline Souza, Graciela prestou consultoria para o roteiro junto com Renata Tupinambá. Segundo a cineasta, nascida na aldeia Jaguapiru e pertencente aos povos Guarani e Kaiowá de Mato Grosso do Sul, as duas puderam trazer muito de suas vivências como mulheres indígenas para a narrativa, que explora os medos femininos. Além disso, o diálogo com outros departamentos da produção ajudou a trazer para a ficção elementos de sua cultura.
“Troquei muito com a equipe de figurino. Uma das minhas sugestões foi um colar que as adolescentes gostavam muito de usar, mas também contribuí na questão da pintura e da própria língua. O sotaque das palavras, que é muito acentuado na minha aldeia, coloquei nas personagens que são inspiradas livremente no meu povo”, explicou.
Criada em uma família que gosta de assistir aos programas de TV, Graciela conta que sentia falta de ver ali pessoas como ela. “Tentei preencher isso de uma forma simbólica dentro de mim, e acredito que também vá reverberar nos meus parentes e no público em geral. As pessoas vão ver ali três mulheres lindas e talentosas estreando em rede nacional, isso é muito significativo, simbólico. Muitas meninas, não só do meu povo, mas de outros povos vão se enxergar, vão ver ali seus traços”, analisou.
A proposta da série, de ultrapassar os limites do realismo para tratar de temas importantes, agradou de cara a diretora. “O fantástico está muito presente em qualquer povo indígena. E quis tratar isso de um jeito que a gente não caia no senso comum do que é certo ou errado. A questão fantástica indígena é diferente da ocidental, que tem o bem e o mal separados certinho. Foi bom trabalhar com esses signos, levar um pouquinho pra sociedade entender que as forças que a gente tem uma força da natureza não é bem nem mal, ela existe”, afirmou.
Estreia também no streaming
Recentemente, Graciela também foi uma das diretoras da segunda temporada de Cidade Invisível, da Netflix. Assim que a série foi lançada, em 2021, a produção foi bastante criticada nas redes sociais pela falta de referências às culturas indígenas. Ela conta que acompanhou todo o burburinho e ficou feliz com as mudanças – no novo ano, a equipe ganhou integrantes indígenas no roteiro e na direção, e a trama, antes ambientada no Rio de Janeiro, foi transferida para o Pará.
“Acho que agradou os parentes, eles se sentiram representados”, contou ela, que classifica como um desafio ter trabalhado em um processo coletivo de direção. “Eu nunca tinha entrado num set grande, com um aparato de cem pessoas, porque a gente faz nossos projetos autorais, com pouca gente. O primeiro estranhamento pra mim veio nesse sentido.”
A cineasta comemora o fato de a série ter ficado no top 10 por duas semanas consecutivas em mais de 10 países, mas ainda acha que o avanço no mercado audiovisual é tímido para a inclusão de histórias e profissionais indígenas.
“A gente está conseguindo algumas coisinhas. Mas num evento como esse [o Rio2C], a minha galera nunca ia entrar. Primeiro, pelo poder aquisitivo. E segundo pela falta de oportunidades. Hoje a gente tem no Brasil cinemas muito bons que não são enxergados, histórias e narrativas riquíssimas, que não ficam só na floresta, na mesmice. Eu não deveria ser a única aqui discutindo conteúdos nas telas, poderiam estar muitos outros parentes”, analisou.
Para além das pautas indígenas, Graciela acha importante retratar esses povos em histórias com temas diversos, em histórias que tratem, por exemplo, de drama ou romance. “A gente passou e ainda passa por um processo de desumanização muito violento. Mas temos questões universais como todo mundo. A gente é humano, passa por tudo isso”, ponderou.
Depois das experiências em grandes produções, Graciela deseja voltar ao cinema. “É importante a gente estar nesses lugares [na TV e no streaming], porque passa por uma questão política e de a gente fazer, de certa forma, uma reeducação desses lugares, dialogando, fazendo junto. Mas quero alavancar minhas produções autorais”, contou.
Seu próximo projeto é o documentário experimental Horizonte Colorido, sobre sua filha. “Ela pinta e tem uma sensibilidade muito grande de ver as coisas que a gente não vê. Finalizei o longa agora, com financiamento americano, não consegui aqui dentro [do país]. Vou lançar em maio, primeiro na aldeia, depois em Paris”, disse.
Fonte: Omelete