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Terra e Paixão tem bastante Terra, mas bem pouca Paixão

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A teledramaturgia vez ou outra oferece algum frescor em suas recorrências. Contudo, elas geralmente correm atrás do mesmo rabo (o próprio). Nunca foi uma exigência do gênero que a palavra de ordem fosse originalidade, justamente porque muitas vezes a catarse se promove no âmbito da identificação. As novelas das 21 horas, sobretudo, têm quase sempre a sua família rica dona de empresas, o pobre que vence na vida, o casal separado por causa de famílias inimigas e o vilão chapado sem traços de humanidade. Essa é uma identidade, apenas isso, sem juízo de valor. E é o bom uso dos clichês que resulta em uma boa novela.

Existem autores bastante apegados à cartilha. Sílvio de Abreu, Aguinaldo Silva, Gilberto Braga, são apenas alguns dos que giram essa roda. Suas novelas não escapam de ter a grande empresa, o cargo de presidente, o casal central caindo em armações, o vilão de terno… Enquanto, do outro lado, outros autores conseguem sair um pouco da fórmula. Manoel Carlos, por exemplo, não costuma ter uma grande empresa familiar sendo disputada em suas novelas (com exceção de Por Amor). Ele fugiu da cartilha oficial criando a própria (que inclui o Leblon, a filha chata das Helenas, os fetiches, os machismos e por aí vai…).

Walcyr Carrasco do horário das 18 criou sua “mitologia caipira” com extrema competência. E ali ele seguiu sua métrica em O Cravo e a Rosa (2000), Chocolate com Pimenta (2003) e Alma Gêmea (2005). Na sua versão do horário das 19, tivemos Sete Pecados (2007), Caras e Bocas (2009) e Morde e Assopra (2011). Nas três do horário das 19 os sinais de caos já eram grandes. Com seu pé na fantasia popularesca, Walcyr teve mais dificuldade de imprimir sua criatividade em tramas contemporâneas. Quando foi para o horário das 21, tentou um equilíbrio entre uma coisa e outra, tentando manter o controle para não misturar de novo dinossauros e robôs. E foram três grandes títulos novamente: Amor à Vida (2013), O Outro Lado do Paraíso (2017) e A Dona do Pedaço (2019).

Três grandes novelas das 18; três novelas ambíguas nas 19 e três imensos sucessos no horário das 21. É claro que houve desvios para outras produções, mas é como se Walcyr já tivesse sua própria sinfonia. Quando a melodia das 18 passou do nível 3, ele mudou pra melodia das 19. Três níveis depois, ele mudou para a melodia das 21 (ele até tentou fazer um intervalo às 23, mas Verdades Secretas 2 parecia um surto e terminou desenganada). Sem ter para onde ir, o autor voltou para as 21, fazendo de Terra e Paixão sua quarta investida no horário. E sem esse intervalo, será que o que vivemos não é uma simples saturação da familiaridade?

Terra e Repetição

A repetição é um traço de absolutamente todos os autores (que também podem chamar a prática de “estilo”), mas com Walcyr ela é uma palavra de ordem. Não estamos falando somente de uma repetição narrativa, mas de seu didatismo textual, de sua ideia de que o público não tem cognitivo suficiente para tirar conclusões caso tenha perdido algumas cenas. Para Walcyr os personagens precisam recontar a trama todos os dias, de maneira expositiva; e a trama, é claro, está longe de ser complexa assim. Quando unimos o cansaço do enredo central com o cansaço de ouvir sempre as mesmas conversas, o interesse pela novela se esvazia. Se tudo é repetido o tempo inteiro, qual o ponto em continuar assistindo?

Terra e Paixão tem um problema estrutural na sua gênese, mas isso poderia ser perdoado caso a novela não fosse tão “esquetizada”. Não é necessário assistir todos os dias, porque já sabemos que todos os dias o Caio (Cauã Reymond) vai repetir que foi rejeitado porque a mãe morreu; que La Selva (Tony Ramos) vai dizer que vai destruir Aline (Barbara Reis); que Aline vai usar a expressão Terra Vermelha; que Irene (Glória Pires) vai falar que quer Graça (Agatha Moreira) casada com Daniel (Johnny Massaro); que o italiano falso (Rainer Cadete) vai pedir mais dinheiro para Gladys (Leona Cavalli) e logo depois armar um plano de algo com Anely (Tatá Werneck)… e por aí vai. Os personagens (sobretudo os coadjuvantes) nunca saem do lugar.

O núcleo central talvez seja o mais opaco que Walcyr já criou. Suas outras novelas das 21 eram clássicas tramas de vingança e superação, mas a de Terra e Paixão não transmite absolutamente nenhum carisma. Tony Ramos dá uma extrema dignidade ao vilão, mas ele faz o mesmo em todo capítulo. Glória Pires está presa na mesma espiral. Massaro é convincente na pele de Daniel, mas acreditar nas fragilidades do Caio de Cauã Reymond é muito difícil. Caio foi criado com base em inseguranças que Cauã não consegue expressar. E é provável que isso seja um efeito colateral do ciclo de personagens muito excessivamente dramáticos e sisudos que ele interpretou em sequência.

A briga por terras é legítima, mas enfadonha. O drama do filho rejeitado porque a mãe morreu no parto é um recurso comum, mas arriscado nesse caso (se Renascer for a próxima novela, a trama de João Pedro será exatamente a mesma). Barbara Reis está jogando com tudo que pode, mas a química de Aline com Daniel e com Caio é nenhuma. Quando colocamos Petra (Débora Ozório) nessa equação o cenário piora. A personagem foi concebida para ser irritante. O panorama é complicado, porque não dá vontade de torcer por ninguém que ocupa a posição de protagonista.

Nas periferias do núcleo central está a luz no fim do túnel. Nas redes sociais a parceria entre Tatá Werneck e Rainer Cadete é bastante celebrada. Mas, o que torna Anely interessante – que é sua relação com a irmã – corre o risco de ser apagado progressivamente. Com os números baixos, Tatá pode acabar sendo obrigada a sacrificar a dignidade de Anely em nome do espetáculo. Ela já passou por isso antes, em Deus Salve o Rei; e a boa recepção de uma personagem que finalmente libertou-a do ciclo de comparações injustas pode ir por água abaixo. Tatá sempre fez personagens diferentes, e a percepção de que “algo está diferente agora” parte de uma iniciativa tardia de olhar com atenção para nuances.

E como já era de se esperar, a relação entre Kelvin (Diego Martins) e Ramiro (Amaury Lorenzo) é outro dos sucessos de repercussão nas redes sociais. Os personagens são o coringa preferido de autores como Walcyr e Aguinaldo Silva: o personagem gay afeminado que tem uma relação clandestina com um tipo heteronormativo tosco. Todo estereótipo é uma verdade exagerada, mas ainda assim é uma verdade. No caso dessa abordagem, o hematoma está nos objetivos. Diego está sempre preocupado em humanizar Kelvin, evitando cair na tentação de “vender-se” ao riso fácil. Sua luta é a mesma de Tatá – e ambos seguram sozinhos a barra de dar à novela algum carisma.

Já se começou a falar em “antecipar viradas”, eliminar tempo de tela de uns, aumentar de outros; trazer participações… Walcyr não tem problema nenhum em mudar a direção do barco caso o vento não lhe favoreça. E estatisticamente, novelas que reviraram concepções para agradar ao público quase sempre continuaram falhando artisticamente, mesmo que tenham recuperado os números. Em Amor à Vida, quando mudou o destino de Felix (Mateus Solano), Walcyr teve muita sorte e o universo se alinhou para fazer daquele personagem um marco de aceitação e diversidade. Mas, essa foi definitivamente uma exceção.

Há um imenso potencial no núcleo de Debora Falabella; um imenso potencial no núcleo do bordel (a chegada de Thati Lopes ajudou a diminuir a apatia que a personagem de Suzana Vieira transmitia para todos os outros; não por culpa dela, mas do paupérrimo texto que regia Cândida); há potencial no núcleo indígena; e também há condições de fazer desse enredo central o primeiro passo para maiores e melhores ousadias. Estão todos com as agulhas presas no disco arranhado. Contudo, a missão é mais árdua: é preciso melhorar uma canção que já foi composta sem viço. A luta pela terra é constante; mas, infelizmente, ela não é suficientemente apaixonada. 

Está definido…

… que é muito importante manter em perspectiva que a TV precisa parar de perpetuar a cristalização de métodos. As escalações de elenco, por exemplo, precisam ser revistas. Atores passam mais das metades de suas carreiras “proibidos” de escapar da “etiqueta” que a indústria colou em suas testas. E isso continua acontecendo; mesmo que Claudia Raia tenha provado o talento para o drama; que Regina Casé tenha sido uma grande vilã; que Miguel Falabella tenha sido um serial killer; que Barbara Reis tenha sido mocinha e bandida na TV e no streaming; que Tatá Werneck tenha sido mais complexa… Estamos prontos para mudanças. Mudem.

Está a definir…

… quem será a substituta de Terra e Paixão. Ao que parece, os trabalhos com o remake de Renascer estão seguindo, mesmo depois que todos apontaram para o fato de que o drama de José Inocêncio e João Pedro é o mesmo de Antônio e Caio. Não por coincidência, a ideia de levar ao público mais um remake, reitera essas noções de repetição mencionadas nesse texto. Se está difícil ficar no clássico, arrisquem. Se os autores estão saturados, deem oportunidades a outros. Toda essa nostalgia estrutural está saturada.

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