Na Temporada França-Brasil 2025, um dos espetáculos que mais têm emocionado plateias é o “Atomic Joy”, da coreógrafa e artista visual Ana Pi. A obra propõe um exercício poderoso: imaginar um mundo sem samba, sem hip-hop, sem funk. “Será que a gente ainda estaria aqui?”, provoca a artista, mineira de Belo Horizonte que mora na França há 14 anos.
Unindo alegria e resistência, o espetáculo é uma ode à cultura negra e às danças de rua como formas de sobrevivência, comunicação ancestral e criação de mundos. Com oito dançarinos em cena, Ana Pi traduz batalhas individuais e coletivas em coreografias vibrantes, nascidas nas ruas de Paris, Salvador e Belo Horizonte, mas com ecos de um Atlântico Negro pulsante.
“Essas danças são ferramentas de comunicação. Elas carregam uma sofisticação que vai além da estética: são encontros, trocas de informação e resistência cultural”, explica Ana.
A apresentação faz parte da programação da Temporada França-Brasil, que traz uma proposta ousada: revisitar a relação dos dois países sob a perspectiva da diversidade, da descolonização e do diálogo afroatlântico.
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Uma alegria atômica, frágil e potente
O nome “Atomic Joy” nasce da tensão entre alegria e guerra. Ao mesmo tempo que remete à bomba atômica, também sugere uma alegria sutil, microscópica, que resiste mesmo nas pequenas coisas. “O atômico, pra mim, é o que resta quando tudo se desintegra. É a alegria possível em meio à dor”, resume Ana.
Um oceano que une histórias
A escultora e artista francesa-camaronesa Beya Gille Gacha também faz parte da programação com o projeto Oceano Negro, que inclui uma residência artística para mulheres negras na Ilha de Itaparica, na Bahia. A experiência, diz ela, é um reencontro com as próprias origens — descobertas, em parte, ao visitar o porto de Bimbia, nos Camarões, de onde partiram milhares de pessoas escravizadas para o Brasil.
“Vi o nome do Brasil escrito em placas de ‘expedição de seres humanos’ e desabei. Entendi ali o tamanho da ligação que tenho com esse país”, conta Beya. “Existe uma amnésia dos dois lados — tanto de quem foi quanto de quem ficou. E a arte pode ajudar a curar isso.”
A residência, que acontece no segundo semestre, será um espaço de criação, escuta e renascimento. “Criar também é um ato de cuidado”, diz a brasileira Fabiana Ex-Souza, artista e pesquisadora radicada em Paris. Ela acrescentou o “Ex” ao sobrenome como símbolo de ruptura e reapropriação: “É um gesto de descolonização. Não apaguei minha história, mas criei um espaço para ressignificá-la”.
Temporada França-Brasil: mais do que intercâmbio
A temporada cultural entre os dois países vai até dezembro e passa por 15 cidades brasileiras, com foco em temas como democracia, diversidade e transição ecológica. A ideia é não apenas mostrar a cultura francesa no Brasil, mas construir diálogos, abrir feridas e, quem sabe, começar a cicatrizá-las através da arte.
“O Brasil preservou muito da África que foi apagada no próprio continente africano por causa da colonização. Então, quando artistas negras se encontram aqui, algo muito poderoso acontece. É reencontro, é ritual, é cura”, conclui Fabiana.
Com dança, escultura, memória e troca, a Temporada França-Brasil mostra que resistir também pode ser um ato de alegria — atômica, ancestral e inapagável.