Enquanto líderes globais debatem o futuro do planeta na COP30, em Belém, a poucos quilômetros dali uma outra realidade grita por atenção: a da Vila da Barca, uma das maiores comunidades urbanas de palafitas da América Latina. O bairro centenário, às margens da Baía do Guajará, virou símbolo dos desafios da justiça climática, mostrando como a crise ambiental afeta primeiro — e com mais força — quem já vive em condições vulneráveis.
“Quando venta, a casa balança”: vidas sobre madeira e incerteza
A aposentada Cleonice Vera Cruz, de 77 anos, mora na Vila da Barca há quase seis décadas. Sua casa de madeira, erguida sobre palafitas, balança quando o vento sopra forte e não resiste às chuvas intensas.
“Molhou tudo aqui dentro. É tudo furado”, contou ela após o temporal da véspera.
E o medo não é exagero. Na madrugada de sexta (14), uma das casas da vila desabou. Uma criança e uma pessoa com deficiência estavam entre os moradores, que conseguiram escapar após ouvirem estalos na estrutura. Outras residências vizinhas ficaram comprometidas e parte das famílias precisou ser acolhida pela própria comunidade.
O colapso aconteceu justamente no fim da primeira semana da COP30 — ironicamente, enquanto autoridades mundiais discutiam soluções climáticas.
Para quem vive ali, a crise ambiental não é um conceito, mas parte diária da vida.
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“Falam de clima, mas esquecem de quem mora aqui”
Gerson Siqueira, presidente da Associação de Moradores, resume o sentimento local:
“Fala-se em transição energética, em financiamento… mas e a moradia? A crise ambiental também é habitacional.”
Ele lembra que milhares de moradores da Amazônia vivem sem saneamento básico adequado e sem sistema de abastecimento seguro, mesmo diante das mudanças climáticas cada vez mais extremas.

Racismo ambiental: quem mais sofre com desastres
Um estudo apresentado pela Habitat para a Humanidade Brasil durante a COP30 reforça o que se vê na Vila da Barca:
- 66,58% das pessoas que vivem em áreas de risco são negras.
- 37,37% desses lares são chefiados por mulheres.
- 20,29% não têm esgoto.
- 2,41% não possuem coleta de lixo adequada.
- A renda média nessas áreas é quase metade da média geral das cidades analisadas.
Entre 2013 e 2022, mais de 2,1 milhões de casas foram danificadas por eventos climáticos extremos no Brasil.
Raquel Ludermir, da Habitat Brasil, destaca:
“A maioria das pessoas em áreas de risco é negra, de baixa renda, muitas são mulheres chefes de família e, em vários casos, sem escolaridade formal. Isso é racismo ambiental.”
A vida real por trás dos números
A diarista Maria Isabel Cunha, a Bebel, representa esse perfil. Mãe solo de dois filhos — um deles com deficiência — vive das poucas faxinas que consegue fazer e da pensão do filho.
“O dinheiro não dá pra ajeitar a casa. Eu queria um emprego fixo, mas também preciso cuidar do meu filho”, explica.
Ela gosta da união comunitária da vila, mas sente falta de equipamentos públicos próximos — clubes, escolas, espaços de apoio.
Curiosamente, poucos moradores acompanham de fato as discussões da COP30, mesmo com o evento acontecendo a cinco quilômetros dali. Para muitos, as reformas de embelezamento na área turística foram mais perceptíveis do que os debates globais.
Melhorias vêm, mas a pergunta segue sem resposta: até quando?
A Vila da Barca tem cerca de 600 moradias de palafitas e mais de mil famílias. Em julho, começaram obras de saneamento feitas pela empresa Águas do Pará — investimento de R$ 15 milhões. A etapa de abastecimento de água foi concluída e agora os moradores têm hidrômetros individuais. A taxa prevista é social: R$ 66,42.
A rede de esgoto deve ficar pronta até abril do próximo ano.
Mas, mesmo com avanços, Gerson Siqueira faz a pergunta que ninguém resolve:
“As famílias vão continuar morando sobre palafitas até quando? A gente quer permanência, mas com dignidade.”
A comunidade reivindica um conjunto habitacional próximo, que permita manter vínculos territoriais e culturais.

Uma vila vulnerável, mas culturalmente gigante
Apesar das dificuldades, a Vila da Barca pulsa cultura:
- recebe a imagem peregrina de Nossa Senhora de Nazaré no Círio;
- realiza festas juninas tradicionais;
- promove blocos carnavalescos;
- mantém viva identidade ribeirinha e amazônica.
Essa força comunitária contrasta com a negligência histórica do Estado brasileiro.
Justiça climática também é direito à cidade
Segundo a Habitat para a Humanidade, apenas 8% das metas climáticas apresentadas pelos países (as NDCs) incluem ações ligadas a favelas, comunidades vulneráveis e políticas urbanas — mesmo que sejam exatamente esses territórios os mais impactados por extremos climáticos.
Raquel Ludermir alerta:
“Adaptar não é remover. Fortalecer a resiliência das comunidades é garantir permanência com segurança, e não justificar despejos como falsa solução climática.”




